Clélia Serrano nasceu em Pernambuco, mas veio ainda no colo para o Rio. Os primeiros passos desta dama com pés de lã foram dados em pisos cariocas que a levaram ao seleto corpo de Baile do Theatro Municipal.
Era o ano de 1973, quando todos dançavam no Rio, todos dançavam no Frenetic Dancing Days, que ela veio para Campos acompanhando o marido médico.
Com sua tribo toda no Rio, não havia ninguém para bailar com ela, como diria Rita Lee. Clélia decide então montar a academia de dança homônima que já formou grandes bailarinas, entre elas Nina Barcelos, campista, considerada uma das melhores do mundo. A história de Clélia renderia um livro e uma única página de jornal é pouco. Ela não vai falar de plié, tendu, jeté, rond de jambe, e outras clássicas posições do ballet. Nem sequer discutir se é balé ou ballet.
Como foi a decisão de montar uma escola de dança em Campos no início dos anos de 1970, no auge de sua posição como bailarina clássica do Theatro Municipal do Rio?
Sim, eu era bailarina do Municipal e era o ano de 1973. Meu marido tinha se formado em medicina e foi convidado para vir trabalhar na Santa Casa de Campos. Com isso, ele foi também para a Faculdade de Medicina, entre outras atividades. Então, ele ficou com três ou mais trabalhos. Tive que pedir licença do Municipal sem remuneração para eu poder ficar um tempo, um período, né? Então, vieram três filhos e adotamos outro. No começo tive depressão, pois a dança sempre foi e continua sendo minha vida. Escutando uma rádio local, ouvi uma música clássica que me despertou e então montei a Academia de Dança.
E como foi?
A música clássica do rádio salvou. Aí eu digo, Jesus, pelo amor de Deus e resolvi abrir a academia. Abri a academia e a primeira pessoa que eu conheci aqui foi Marilda Lobo. O marido dela era médico também e ela me ajudou muito. Logo foi aparecendo gente. No fim das contas, eu estava com umas 600 alunas. Com o tempo, minha filha Cláudia, minha herdeira na dança, queria dinamizar, inclusive montar uma academia de ginástica em anexo, já que meu filho Henrique cursava Educação Física. Aí eu botei aqui, ele se formou e não quis vir para cá, foi para outro canto. E eu não conseguia um professor fixo. Então, focamos só na dança.
E como atender a demanda de tantas alunas?
Eu acabei, com o tempo, formando professoras e posso citar aqui Miriam, filha da amiga Marilda Lobo. Assim como ela, outras como Beatriz Póvoa, assim como minha filha Cláudia. Enfim, várias deram aula e a academia sempre cheia. Minha filha teve uma filha, que não se revelou bailarina, pois nasceu com limitações físicas. Ela está fazendo Letras na PUC do Rio; Ela não enxerga direito, mas tem sido nossos olhos em tudo. Ela enxerga a nossa alma.
A academia teve um recesso quando a neta nasceu. Pode falar sobre isso?
Quando ela nasceu fui para o Rio ajudar Cláudia e fechei a academia. Um ano depois, Beatriz Póvoa me procurou lá no Rio, e perguntou se gostaria de abrir com ela a academia. No começo, eu dividia meu tempo entre o Rio e Campos. E assim ficamos alguns anos até para a Eduarda, minha neta, e a Cláudia estarem bem. Como Beatriz quis sair da academia, eu continuei. Só que eu não tinha professor nenhum, só eu mesma. Aí eu importei dois professores de Cuba. O casal era de bailarinos, mas eles se separaram, ele foi para outro lugar trabalhar. Ela continuou comigo, está comigo até hoje, embora ainda dê aula em outras academias. Mas está até hoje comigo, é uma boa profissional.
Dizem que no ballet clássico, principalmente, além da disciplina, é preciso muito estudo. Como é isso?
Isso é a mais pura verdade. A gente precisa de muito estudo. Eu estudei demais. Viajei muito, o mundo todo. Para a Rússia, eu já fui umas cinco vezes para estudar, para ver tudo, ver o teatro, conhecer o teatro todo, ver a aula… Trabalhar mesmo e ter conhecimento próprio. Fui estudar dança em vários países. Muitas de minhas alunas fizeram o mesmo, como a Nina Barcelos, campista que hoje é considerada uma das maiores bailarinas do mundo. Era uma menina excelente na aula. Ela respirava dança e hoje encanta o mundo. No momento, ela dança em Praga, no Leste Europeu.
Isso deve te dar muito orgulho, não?
No começo ela me odiava pela cobrança e insistência nas aulas. Depois, já há algum tempo, ela faz uma declaração no Jornal O Globo, dizendo que se não fosse a tia Clélia, ela não seria a primeira bailarina na Alemanha, posição que ocupava na época. Porque foram minhas cobranças que no fundo a motivaram. Tenho muito orgulho, sim. Campos e o Brasil também deveriam ter.
Você quebrou muitos paradigmas em Campos, com homens fazendo dança.
Pois é, por que isso? Por que esse negócio, essa distância que homem não pode fazer ballet? O homem pode cozinhar, pode costurar. Ele pode mil coisas. Por que ele não pode ser bailarino? Se tiver no sangue dele, como tem o sangue do Pericles Emmanuel, que foi meu aluno. Hoje nos Estados Unidos.
Lá na Zona Portuário do Rio existe um bairro chamado Pequena África, que tem uma estátua de Mercedes Baptista. Essa também quebrou paradigmas. Fale sobre ela?
Ela foi minha professora também. Ela era campista e foi a primeira bailarina negra do Municipal. Tinha um porte físico diferente de uma bailarina profissional, mas se superava na originalidade dos seus movimentos e na repetição dos seus estudos. E ela foi para a parte de dança africana e é merecedora daquela homenagem. Sobre dança, essa questão de porte deveria dizer muito pouco, principalmente quando se é criança. Eu danço desde os cinco anos. Uma menina de sete anos quer ser bailarina, mas é gordinha. Incentive ela, afinal, sua postura ainda não está definida e aí o exemplo da Mercedes, que optou por outra dança, cabe como uma luva. Eu estudei todas as danças possíveis e imaginárias. Estudei tudo: sapateado, contemporâneo, moderno, espanhol, tocava com espanhola, fazia tudo. Para mim, o Madeleine dizia assim: você quer ballet? Vai aprender tudo de dança. E eu aprendi tudo de dança. Quer dizer, se mandarem eu dar uma aula de dança espanhola? Acho que ainda consigo, porque fica ali na mente, para o eterno, não sai da mente o que eu fazia, as aulas que eu fazia com a Mercedes, maravilhosas. Nossa senhora, eu fiz de tudo.
E a Ana Botafogo?
A Ana Botafogo é uma querida também. Eu a conheci quando eu tinha saído do corpo de baile e ela tinha entrado. Mas aí, Madeleine, ela queria que eu dançasse aqui em Campos ‘A Bela Adormecida’, eu acho. Então, ela virou-se para mim e disse assim: você sabe já a coreografia? Eu disse que da Bela, não, vi pouco. Aí ela foi assim, então vou te levar na Ana, que ela acabou de dançar e pode te ensinar a coreografia. Vamos lá, tudo bem. Aí eu vim para o Rio e me encontrei como a Ana Botafogo e foi assim. Ela é uma delicadeza e me ensinou a coreografia, deu umas ensaiadinhas comigo.
Esses artistas todos passaram por Campos. Relembre.
Eles vieram dançar aqui uma vez, no terceiro ato do Lago do Cisne, e chamaram as minhas meninas mais velhas para fazerem a corte. Elas foram, tenho foto até hoje delas. Aí, coisa assim que trazia muita gente para dar aula. Grandes bailarinos. E o meu primeiro espetáculo aqui em Campos foi no Trianon antigo, aqueles que derrubaram para dar lugar a um banco. Ver aquele teatro sendo demolido foi a pior das visões.
E como você vê a dança hoje?
Hoje elas querem jazz, contemporâneo, tudo que não precisa de uma absoluta técnica e disciplina. TikTok? As crianças hoje em dia vivem assim, no TikTok. Vivem se mexendo, todo mundo tem, até com dois anos já está no TikTok. Eu não sou contra dança nenhuma, absolutamente, muito pelo contrário, como dizia a Madeleine, você tem que conhecer todas as danças. Mas a queda do clássico está sendo muito grande aqui em Campos, muito grande. O maior nível de ballet clássico, realmente, hoje, está em São Paulo, Joinville e Rio.