Se nos dias atuais Woody Allen resolvesse refilmar o extraordinário “Meia-noite em Pais”, com pitadas de uma espécie de atualização – isso porque, lançado em 2011, seria muito cedo para se falar em remake – teria que mudar todo o contexto do roteiro, visto que na última década e meia o mundo avançou ferozmente para reencontrar-se com o pior do século 20.
Diria o leitor: mas, o filme fala de amor… de aventuras românticas! É verdade. Mas trata também do belo, da paisagem, da literatura, do lírico e da Paris não ocupada pelos nazistas em 1940. Trata, em especial, da visão do romântico Gil Pender (Owen Wilson) – um frustrado roteirista americano de cinema que sonha ser escritor – apaixonado pelas décadas não-tecnológicas anteriores à realidade de seus dias – deste nosso mundo contemporâneo.
Numa certa noite Gil, ao vagar pelas ruas de Paris,é abordado por alegres ocupantes de um charmoso cachambeque amarelo que o convidam para uma festa. Quando o carro para, Gil se vê transportado para a Belle Époque parisiense dos anos 20 – a década de seus sonhos – e de festa em festa passa a viver tudo que sonhava e a conviver com os artistas e escritores que mais admirava.
Na viagem ao passado, a fantasia ganhava vida e se repetia noite após noite quando ‘subia’ no carrinho que o levava aos deslumbrantes anos 20. Mas ao voltar à realidade, se defrontava com a rispidez de seus futuros sogros e à futilidade de sua noiva, Inez (Raquel McAdans) – todos insensíveis à arte e alheios ao que seja vislumbrar Paris e caminhar meia-noite às margens do Sena.
De dia, Gil suportava o tédio. Mas a noite, dava desculpas que estava cansado, que ficaria no hotel… e logo saía para embarcar no mesmo calhambeque que o levava a restaurantes, bares, casas de espetáculos, etc… já aí na companhia de seus ‘novos amigos’ – os que conhecia de livros antigos e que tanto admirava.
Gil Pender, o roteirista sem inspiração do século XXI, passa a desfrutar, entre outros, da amizade de Ernest Hemingway, Picasso, Salvador Dali, Cole Porter, Gertrude Stein, Zelda e Scott Fitzgerald. Woody Allen introduz, ainda, a fictícia personagem Adriana, vivida pela bela Marion Cotillard, por quem Gil se apaixona e ambos passam a viver intenso romance, visto que para Adriana também foi amor à primeira vista.
Contudo, aoperceber que estava vivendo um sonho – um lindo sonho; mas que não era real – resolve permanecer em Paris e tentar fazer da fantasia do passado o futuro escritor que desejava. Conhece a vendedora de livros Gabrielle (Léa Seydoux, a atriz francesa que fez os dois últimos 007), os dois se apaixonam e Gil passa, então, a viver um amor verdadeiro e de sua época.
Apesar de deixar pontas soltas à interpretação, com “Meia-noite em Paris” Wood passa uma mensagem clara: que as pessoas contemporâneas raramente estão satisfeitas com suas épocas e tentam encontrar conforto nas épocas que admiram, mas não viveram.
Mas, caro leitor, não era essa a proposta do texto. De fato, pretendia aproveitar-me da obra Woody Allen – que se valeu do passado para relativizá-lo com o presente – e deixar a interrogação se o genial cineasta poderia repetir a façanha daqui a 50 anos.
Em outras palavras, o Sena ainda seria navegável para os passeios nas embarcações, onde são servidos jantares com vista para os Palácios? Ou estaria apenas transportando fumaça tóxica? Ou, ainda pior, sendo destruído pelo fogo de turfa, que queima de forma subterrânea?
Daqui a meio século a poluição irá permitir que se vislumbre a Torre Eiffel? Como uma parte do mundo arde em chamas e, em outras regiões, as guerras avançam, estará a França como hoje conhecemos? Será possível caminhar meia-noite em Paris, ou a “Cidade Luz” estará sob toque de recolher?
Os tempos são dramáticos. A Rússia em guerra com a Ucrânia; Israel com o Hamas e, agora, com o Líbano. O Oriente Médio a um passo de deflagrar um conflito geral, o que obrigaria outros países a intervirem gerando mais tensão.
Enfim, a luz do fim do túnel projetada para daqui a 50 anos não está ficando mais forte, mas apagando. Resta torcer para que no futuro, os ‘nossos’ anos 2020 não sejam conhecidos como a nova Belle Époque – o que seria catastrófico.