Beleza pura… A pele escura, dinheiro não”. Essas palavras da música famosa de Caetano Veloso ilustram bem os 30 anos de jornalismo de Cláudia Eleonora, que passou pelas principais redes de televisão do país, na frente e por trás das câmeras. Enfrentou barreiras, mas além da competência, seu principal escudo é a consciência de raça, lição que aprendeu com seus pais, que passa para a filha e para todas as mulheres e meninas que cruzam sua vida e têm o mesmo sonho. Citando outra canção de Caetano Veloso, que cabe como uma luva, Cláudia Eleonora sabe bem a “Dor e a Delícia de ser o que é”. E ela não é pouca coisa.
Trinta anos de jornalismo, sendo uma das precursoras no telejornalismo de Campos em uma afiliada da TV Globo. E, certamente, foi a primeira mulher negra aqui na telinha regional. Como foi isso?
Olha, foi um momento muito importante, porque eu me formei em comunicação social, primeiro eu fiz publicidade e propaganda. Fui morar no Rio, trabalhei em algumas agências de publicidade, em jornais de bairro, e a partir desse momento que eu comecei a perceber que era no jornalismo que queria atuar. Então, retornei à Campos e estudei jornalismo na faculdade. Naquela época, a gente se preocupava muito com a formação acadêmica. Eu observava a saudosa Glória Maria, que abriu esse caminho, uma mulher negra como eu, em posição de destaque, enfrentando as barreiras de uma sociedade desigual.
A Glória Maria foi inspiração?
Me inspirava muito nela para enfrentar as dificuldades e apresentar um trabalho de qualidade. Eu percebia que ela estava sempre à frente nas produções de jornalismo. E aí eu comecei a atuar. A primeira porta que se abriu para mim foi na extinta TV Norte Fluminense, que era afiliada à TV Globo. Lá, eu participei de testes com sete pessoas e eu lembro muito bem que ficava muito preocupada. Eu queria muito estar ali. Minha mãe conversou comigo e falou assim “são sete pessoas, mas você só precisa de uma vaga. Então vá com muita firmeza.”
E as barreiras?
Enfrentei barreiras sim, porque ser negra numa emissora de TV não era muito comum. Mas, também tive muita receptividade, porque as pessoas se identificavam comigo. E, como era uma emissora que tratava muito da questão comunitária, eu tive muito acesso a todos os cantos da cidade. As pessoas me recebiam com muito carinho, porque eu representava aquela comunidade, aquelas pessoas que são também negras. Nós somos uma maioria minorizada, mulheres e a população negra.
Você passou desse período na Globo aqui, depois foi para outra afiliada da Globo e mais recentemente foi executiva da Rede Record. Como isso se passou?
Tudo isso foi muito importante, porque eu atuei na TV Norte, depois recebi um convite para trabalhar na TV Serramar, que também era afiliada à Globo. Depois de um bom período lá, fui convidada a atuar na Record TV. Comecei como repórter, depois passei a ser editora de texto e promovida ao cargo de editora-chefe do jornal que era exibido à noite, o RJ Record. E, quando houve uma mudança de gerência, fui convidada pelo diretor da empresa para uma função executiva, a participar desse processo. E ser gerente de jornalismo foi muito importante para mim, confesso que fiquei apreensiva. Ter um cargo executivo em uma emissora que é tão importante, que tem um acesso tão grande com a comunidade na região Norte, Noroeste, Lagos, Baixada Litorânea e parte da região Serrana, foi um desafio vencido com muiti empenho e competência, um desafio de gestão.
Com toda essa bagagem que você tem sido convidada a falar, fazer palestras. Fale deste novo momento. Como é?
Acho que passar a experiência também faz parte da missão do comunicador. Nós temos o papel de informar, levar notícia com responsabilidade e verdade, mas nós também temos o papel social que é muito importante. E eu tenho consciência disso, por ser uma mulher, uma mulher negra, e com toda essa história acaba sendo um exemplo de sucesso. Passar isso para outras mulheres, para outras meninas que se inspiraram em mim é algo recompensador. Então, isso é importante, propagar para você estimular novas histórias. Estimular mulheres e meninas, meninas negras, a também pensarem em projetos de vida, a conquistar o seu lugar, o seu espaço . Porque as oportunidades ainda são poucas. Mas, nós temos que sempre trabalhar para conquistar aquilo que a gente deseja fazer.
Seu currículo é invejável. Já te falaram isso?
Eu pavimentei a minha carreira com muita dedicação, buscando sempre o melhor. Depois desses anos todos, de experiência no jornalismo, de galgar na minha profissão, sair da reportagem de rua, ser uma editora de texto, depois editora-chefe, e chegar a gerência de jornalismo, é uma trajetória importante. Isso é um exemplo de referência para outras mulheres e para outras meninas negras, porque eu quebrei paradigmas, porque não é comum você ver uma mulher negra em um um cargo de liderança, com tanta influência dentro do ambiente corporativo. E, como eu sempre trabalhei com comunicação e televisão, isso acaba tendo uma exposição muito grande no meu dia a dia. Na minha visão, sendo mulher, mãe atenta e zelosa, acredito que ainda posso colaborar muito como comunicadora e cidadã ativa. Sou de uma família de sete filhos e meus pais sempre apostaram na educação como uma possibilidade de mudança de qualidade de vida. Então, eu gosto de passar esse exemplo para inspirar, porque nós temos esse papel de fazer com que a pessoa olhe na sua trajetória uma possibilidade, também, de construir uma história e que seja vitoriosa.
Você sentiu na pele a dor de ser negra no trabalho como repórter, já passou por algum desconforto?
Ah, sim, passei, mas eu tive que educar as pessoas também, porque quando você tem consciência racial fica menos difícil. Meus pais sempre ensinaram para termos consciência racial, a valorizar a sua história e identidade, para que pudéssemos entrar em qual lugar de cabeça erguida. Aprendemos a ter orgulho da nossa raça, porque a caminhada dos nossos antepassados foi de muita luta para que chegássemos até aqui. Aprendemos a valorizar nossos ancestrais. Durante a minha caminhada percebi, muitas vezes, que queriam, por exemplo, me colocar um apelido, me chamar de Glória Maria de Campos, que era uma pessoa que eu sempre admirei, um sinônimo de excelência. Mas, eu queria que a minha identidade também prevalecesse. Eu queria ser reconhecida como Cláudia Eleonora. Enfrentei preconceito de pessoas que não aceitavam estar no cargo de liderança e ser subordinado a mim. Venci.
E como é que se sai dessa saia justa?
Saí dessas situações me impondo mesmo. Reforcei a minha identidade e me fortaleci superando as armadilhas do dia a dia do trabalho, com muita competência e, tornando esse assunto conhecido, junto aos meus gestores, aos meus diretores, para poder tomar providências para evitar que o problema não atingisse as atribuições de liderança. Precisamos propagar a educação racial, o respeito à diversidade, muitas empresas já desenvolvem isso como estratégia de governança. Respeitar e promover a diversidade são importantes para uma sociedade mais justa, evoluída e democrática.
Milhares de meninas negras sonham em ser jornalistas de TV. Você acha que contribuiu um pouco para isso ?
Olha, com certeza eu abri portas, não é? Porque quando a gente vê o semelhante em diferentes espaços a gente percebe que é possível caminhar, percorrer novas trilhas . Eu acredito sempre na educação. É importante buscar conhecimento. Educação consolidada, estudar, ler muito, para você construir uma carreira, alcançar o objetivo, para ampliar a possibilidade de sonhar e de planejar a vida. Porque as transformações são lentas. Eu venho de uma época em que eu era praticamente a única mulher negra na TV, mas, agora, a gente já percebe que esse caminho está se expandindo. Precisamos avançar muito nas relações humanas. Mas, com empenho e dedicação e foco na educação é possível encontrar mais oportunidades para observar o mercado, fazer a diferença, se destacar e não desistir de realizar o sonho de viver com dignidade.