Se já não teve cabimento ano passado, tampouco teria neste 2020 de coronavírus, em que o Brasil trava batalha feroz para conter o Covid-19 e outra, interna e paralela, que discute procedimentos e ações.
fala de Mourão – Destoando da postura sensata que tem mantido, o vice Hamilton Mourão fez postagem no Twitter que, segundo o UOL, com elogios “à ditadura militar”. Contudo, no post do vice, não há apologia à ditadura, mas sim à “intervenção das Forças Armadas para enfrentar a desordem e a subversão”.
De toda sorte, tendo em vista o momento ora vivido pelo Brasil, a publicação afigura-se inapropriada e absolutamente desnecessário. Contudo, o vice-presidente é, também, um general.
Bolsonaro e Min. da Defesa – Também atropelando este período de extrema gravidade, o presidente Bolsonaro foi às redes sociais para dizer que “não houve golpe” e que a chegada dos militares seu deu “de acordo com a Constituição da época”.
Já o texto divulgado pelo Ministério da Defesa, chamado de “Ordem do Dia”, foi mais além, particularmente no trecho onde ressalvou que “o Movimento de 1964 é um marco para a democracia brasileira”. Neste particular, a discrepância fica latente: golpe e democracia são palavras que de maneira alguma se unem.
Ao longo de quase seis décadas, a História vem revisitando os acontecimentos do 31 de março de 1964, no sentido não apenas de desvendar o que estava encoberto, como de conferir maior exatidão aos fatos.
Antes chamado apenas de ‘Golpe Militar’, nos últimos anos boa parte dos historiadores tem preferido a denominação “Golpe civil-militar”. O acerto no ‘ajuste’ fica claro tendo em vista que o golpe que colocou os militares à frente do governo contou com o apoio de grandes lideranças civis da época, inclusive os governadores do três principais estados brasileiros: Carlos Lacerda, da Guanabara (Rio de Janeiro); Adhemar de Barros, em São Paulo; e Magalhães Pinto, de Minas – além de outros líderes civis de menor expressão.
Além disso, apesar de boa parte da imprensa – particularmente a carioca e paulista – ter buscado, com o passar dos anos, criar uma memória anti-golpe, isso, absolutamente, não representou a realidade de então. Rigorosamente ao contrário, os grandes jornais brasileiros apoiaram abertamente o que a imprensa chamava de “Revolução”, pedindo e aplaudindo a queda do presidente João Goulart.
O Globo, Jornal do Brasil, Correio da Manhã, Diário de Notícias, Folha de S. Paulo e O Estadão cobravam, abertamente, a saída de Jango.
O mesmo sentimento permeou os mais diferentes segmentos da sociedade – entidades de classe, instituições, igreja, empresariado, a maioria absoluta da classe média, os moderados, a etc – temerosos de que Goulart – não por vontade própria (até relutante) mas pressionado por uma ala radical de seu grupo político que cobrava medidas extremistas – levasse o Brasil a uma república sindicalista.
À luz do muito que os estudiosos se debruçam sobre o tema, o que não deixa dúvida é o Brasil experimentou um dos períodos mais negros de sua história, sendo que a ditadura dos porões – a ditadura dos generais – censurou, intimidou, torturou e matou indiscriminadamente os que se opunham ao regime.
Mas é necessário uma ressalva com viés de distinção: em 1964, o Marechal Castello Branco – homem culto, intelectual e chefe do Estado Maior do Exército, amigo da escritora Rachel de Queiroz – assumiu o comando do Brasil… assumiu a Presidência via eleição indireta no Colégio Eleitoral, com o compromisso de tão logo restabelecida a normalidade no País, marcar pleito popular e direto para 65. Portanto, entre o golpe propriamente dito, e a ditadura que efetivamente se instalou anos depois, em especial a partir de 1967/68, com o AI-5, vai uma grande distância.
Os fatos tanto assim corroboram, que o próprio Castello Branco morreu em acidente aéreo suspeito – até hoje misterioso – e lideranças civis que apoiaram o golpe de 64 foram cassados pelo próprio regime que ajudaram a criar.
… E ficaram 21 anos – Decorrido mais de meio século, o Brasil ainda investiga, avalia e faz conjecturas sobre época tão conturbada. E não obstante algumas lacunas talvez nunca venham a ser preenchidas, em linhas gerais os estudos sobre ‘1964’ muito já revelou, corrigiu injustiças e, numa reflexão mais atual, cumpre importante papel de advertência.
Em tempos de recrudescimento, quando o presidente da República não reconhece que houve ditadura no Brasil e verifica-se manifestações pouco afeitas à democracia, há de se observar tudo com imparcialidade – respeitando as diferenças ideológicas – mas, também, com o máximo cuidado.
Afinal, ‘1964’ deveria durar um ou dois anos, mas perdurou por 21. E o golpe de Estado dado para restabelecer a normalidade no País, desaguou em ditadura, em supressão das liberdades e nos horrores da tortura.