Todo o universo que envolve os indígenas da nação Goitacá, aqueles que faziam parte dos povos pioneiros nas regiões alagadas de Campos — na época da antiga Capitania de São Tomé — sempre foi uma questão para despertar curiosidades. Principalmente a partir deste século, muito se tem questionado sobre hábitos, características e práticas destes indígenas, mas, também, o confronto dos relatos vem gerando dúvidas, desde alunos até estudiosos da área. Os indígenas Goitacá caçavam tubarões? Eles eram canibais? Foram exterminados com roupas contaminadas pelos povos europeus? Muitas destas questões ainda causam indagações no imaginário popular. Por isso, no mês em que se lembra o Dia dos Povos Indígenas (em 19 de abril), duas especialistas na área, as historiadoras Sylvia Paes e Graziela Escocard, buscaram dar respostas a estas e outras questões.
Segundo Graziela, guaiatacá, aitacaz e itacaz, são algumas das vertentes de nomes dadas nos relatos sobre o indígena Goitacá. No entanto, outras tribos também passaram pela região como os Coroados, Puris e Guarulhos. Contudo, o indígena Goitacá predominou neste território, reforça a especialista, sendo considerado por alguns viajantes como ‘o senhor absoluto das terras da Capitania de São Tomé’.
Quanto à literatura sobre o tema, a professora de História, dedicada à memória regional/local, Sylvia Paes, explica que há relatos do indígena Goitacá a partir de três perspectivas: dos viajantes, dos cronistas e dos memorialistas. “Os viajantes são aqueles que estiveram na Planície desde o século XVI e já falam do indígena Goitacá. Os cronistas chegam um pouco depois, mas eles vão olhar mais a cidade, falar do indígena, mas com traços culturais. Os memorialistas vão beber da fonte do viajante e do cronista e falar a mesma coisa com outras palavras. Ou seja, guardar a memória para que ela não se perca”, conta.
E Graziela completa: “os memorialistas, por um determinado período, distorceram as falas destes viajantes, levando muito a sério seus relatos, sendo que são falas eurocêntricas. Então a gente tem que tomar muito cuidado com a interpretação”, defende Escocard.
Dentro destes relatos apresentados, segundo a professora Sylvia, um viajante descreveu essa caçada ao tubarão. “Na verdade, a gente não tem tubarão. A gente tem cação no nosso litoral. Mas como viajante também não era ‘expert’ em animais marinhos, ele registrou como tubarão. Hoje a gente sabe que não é tubarão, mas um cação”, desmistificou.
O indígena Goitacá era canibal?
Já sobre o indígena na nação Goitacá ser canibal, Sylvia Paes diferencia e defende que eles não eram canibais. “Há uma diferença entre canibalismo e antropofagia. São dois ritos ou práticas diferentes. O canibalismo é uma prática que você come a carne humana ou por fome ou por ‘maluquice’, como eu costumo dizer para a garotada. Isso existe. Há registros de alguns acidentes que já aconteceram e, para que os indígenas vivessem, em um período de escassez, eles tiveram que lançar mão de comer carne dos que morreram perto deles”, define, de forma descontraída, este primeiro.
Com relação à antropofagia, a historiadora pontua: “a prática da antropofagia, é comum em muitas tribos espalhadas no mundo inteiro, desde os tempos mais remotos até hoje. Não era uma prática só do indígena Goitacá. Quem descreve uma prática dessa foi um viajante francês que morou no Rio de Janeiro e viveu com os indígenas. Ele vai escrever uma obra na qual explica essa prática. Não era qualquer carne que se comia, era a carne daquele guerreiro que não corria do medo, que lutava uma guerra bravamente. Esse era o escolhido para ser honrado com o ritual da antropofagia. Ou seja, todos queremos ser iguais a ele: bravos, valentes, guerreiros, destemidos. E, aí sim, era praticada essa antropofagia”, finaliza.
Eles foram exterminados com roupas contaminadas pelos povos europeus?
“Quanto a esse termo: extermínio, eu particularmente sempre achei ele muito forte”, dispara a professora Sylvia. “Eles estavam desde o século XVI se misturando com o colonizador. Eles estavam se casando, se miscigenando, gerando filhos mestiços. Mas o sangue Goitacá estava ali. Também com negros houve essa miscigenação. Muito provavelmente, quando começaram os massacres e a morte por doenças, eles fugiram”, comenta.
Para reforçar sua teoria, a historiadora lembra que, “hoje, encontram-se muitos grupos da mesma linhagem linguística do indígena Goitacá, que é o macro-jê. Um deles é o grupo Xavante, que está no interior do Brasil. Outro grupo é o Fulni-ô, que está em Pernambuco. Então são grandes representações, quem sabe, de um ex-Goytacá. Não sei. Uns teriam fugido, outros se miscigenado e eles, com certeza, moram em mim”, acolhe Sylvia.
Outras características
Historiadora e, também, Diretora do Museu Histórico de Campos, que está recebendo exposição sobre o tema, Graziela Escocard lembra que os Goitacá sempre foram conhecidos por serem guerreiros. Não aceitavam que seu território fosse invadido. Grazi lembra, também, que os viajantes citam que o Goitacá era um exímio caçador e contavam com uma imensa reserva alimentar.
“Caçavam em bando, pelos campos e matas. Usavam arco e flecha grandes. Há, inclusive, relatos do uso de flechas utilizando as pernas”, segundo um dos viajantes. Sobre as características físicas, segundo citação de Simão de Vasconcelos, os Goitacá tinham “o cabelo no alto da cabeça raspado a modo dos calvos, e os demais crescidos até o ombro, a modo de Cesare”. Já Jean de Léry diz que o goitacá possuía “os cabelos compridos e pendentes ”, ao contrário de outros indígenas que cortavam os cabelos na frente e na nuca. “Andavam nus, sem nenhum adereço aparente, tanto que nas escavações arqueológicas [no Sítio Arqueológico do Caju, em Campos] só foi encontrado dentro das urnas conchas, afirmando tal citação”, sinaliza Graziela.