Cachimbo Jovem de 20 anos exibe o cachimbo que ela guarda na roupa para fumar o crack quando e onde desejar (Foto: Carlos Grevi)
A busca pelo prazer, pela sensação de liberdade, a tentativa de fugir de problemas e a carência emocional são ingredientes que alimentam a indústria do crack. A falta de amor no seio familiar, um trauma ou uma rejeição social tem levado cada vez mais jovens a experimentarem a droga. O Jornal Terceira Via ouviu depoimentos nas ruas de usuários e ex-usuários de crack que conviveram com essas experiências negativas e encontraram um falso refúgio na droga. Muitos conseguiram se desvencilhar do vício. Outros, não.
Relatos de uma usuária de droga
G.E.S. começou a usar crack com sete anos de vida. Ela tem 20 e carrega no corpo as marcas do vício. Lábios e pele ressecados, cicatrizes no abdome, mãos queimadas, sujeira. G conta que foi abusada sexualmente na infância por um parente. Por meio dele também conheceu a droga. “Ele me dava dinheiro em troca da exploração sexual e me induzia a usar drogas. Fiquei viciada e passei a me prostituir para ter dinheiro para comprar crack”.
G. já foi detida pela polícia quando adolescente, roubou, apanhou, agrediu, quase morreu, foi casada, teve uma filha, mas nunca deixou o vício. O cachimbo feito de aro de bicicleta e uma faca amolada são objetos que não saem de perto dela. “A faca é para me defender na rua e o cachimbo para me dar prazer usando crack. Me sinto mulher quando uso a droga. Gosto dessa onda, me distraio, esqueço os problemas. É meu refúgio, faz o tempo passar, nem que seja por 15 minutos que parecem uma eternidade”.
G. confessou que já chegou a gastar R$1.500 em uma noite comprando e usando crack. Para não passar mal ela disse que basta estar alimentada para que o corpo possa suportar os efeitos colaterais. G. já sofreu convulsão, sentiu fraqueza, febre, quase desmaiou e teve tremedeiras quando usou crack sem uma boa rotina de alimentação e foi internada no Hospital Ferreira Machado.
Em uma conversa de aproximadamente meia hora, a jovem moradora das ruas de Guarus disse que não estava drogada porque não queria. Para ela, ter essa opção de escolha a torna forte e capaz de largar o vício a hora que desejar, mas ainda não desejou. No fim da conversa ela pediu dinheiro e, pela negativa, pediu algo para comer. Foi alimentada e seguiu para uma cracolândia que funciona embaixo de uma passarela na Rodovia BR-101, em Guarus.
Apesar de morar na rua, G. disse que costuma pagar diárias em hoteis no centro da cidade para tomar banho e dormir. As principais refeições são feitas no restaurante popular de Campos.
Cracolândias
Usuário de droga dorme na rua Marechal Floriano (Foto: Carlos Grevi)
Os usuários de droga estão ganhando espaço nas ruas e em espaços públicos da cidade. Segundo a Polícia, há cerca de dez anos eles ficavam confinados em parques abandonados, como o Alberto Sampaio, no Centro, por exemplo. Atualmente podem ser encontrados em cracolândias espalhadas pelo município, como na margem do Rio Paraíba do Sul, em Guarus; no entorno da igreja e jardim São Benedito, sob a ponte Leonel Brizola, no Centro e outros pontos.
Na área central, Leonardo dos Santos, costuma ficar na Rua Marechal Floriano. Ele fuma crack para sentir “fortes emoções”. A primeira vez foi com 18 anos e acabou “caindo numa grande armadilha”. Hoje, com 26 diz que começou a usar droga por curiosidade já que estava se sentindo sozinho porque a avó que o criou faleceu e o pai morava em outra cidade. Leonardo conta que trabalha como lavador de carros e consegue ganhar até R$150 por dia e usa o dinheiro para comprar droga. Ela já tentou se libertar do vício, mas nunca conseguiu.
Estatísticas policiais
Para a polícia, a droga alimenta o crime. Segundo o comandante do 8º Batalhão de Polícia Militar, Fabiano Santos, a maioria dos roubos, furtos, latrocínios (roubos seguidos de morte) e assassinatos estão ligados ao tráfico de drogas. Seja para manter o usuário no vício ou pela disputa por território para comercializar a droga.
As estatísticas do 8º BPM comprovam o aumento na circulação de droga dentro do município, o que resulta em apreensões da Polícia Militar. Em 2016 foram apreendidos 21,212 quilos de crack. Um aumento de aproximadamente dois quilos se comparado ao ano de 2015, quando a PM apreendeu 19,694 quilos.
Choque de ordem
A Guarda Civil Municipal (GCM) promoveu uma operação na manhã da última sexta-feira (6) em vários pontos da cidade conhecidos como cracolândia. Foram apreendidas facas, cachimbos, serras, tesouras, maconha, isqueiros, documentos e uma sacola com medicamentos.
A ação aconteceu em pelo menos quatro pontos da cidade: na Praça da República, em uma casa abandonada na rua Marechal Floriano, na rua Tenente Coronel Cardoso e embaixo do viaduto Leonel de Moura Brizola.
De acordo com o comando da unidade, a GCM, em Campos, possui o grupamento “Crack, é possível vencer” e o “Grupamento de Proteção Social”. Pelo menos sete guardas municipais realizaram a operação que recebeu o apoio de um grupo do Centro Pop que abriga moradores em situação de rua.
“O trabalho foi feito depois que recebemos denúncias anônimas. Na Praça da República, por exemplo, os usuários de droga já estavam montando acampamento, levando sofá e outros objetos que foram recolhidos pela Limpeza Pública.”
Profissionais da Limpeza Pública também estiveram nesses pontos e recolheram restos de comida, roupas, lençóis e lavaram os espaços.
“Os moradores foram revistados mas nenhuma droga foi encontrada. Orientamos eles a voltarem para as casas”, disse. O material apreendido foi apresentado na 134ª Delegacia Legal do Centro de Campos, será periciado e apreendido para investigação, segundo informou um guarda que preferiu não se identificar.
Droga barata
Segundo a Polícia Militar, os usuários costumam comprar uma pedra de crack a R$ 10. O valor é considerado barato se comparado a outras drogas. O crack é feito do sumo da cocaína. Os traficantes adicionam substâncias químicas alucinógenas para baratear ainda mais o custo e causar um efeito maior de satisfação ao usuário.
Cristolândia X Cracolândia
Simone Lima de Carvalho, 36 anos e Tairini Faria, 25. Elas têm em comum um passado de riscos de morte, vícios, crimes e um presente de recuperação. Elas integram um grupo de 24 alunas da Cristolândia, um projeto humanitário da Junta de Missões Nacionais da Igreja Batista que ajuda na recuperação de dependentes químicos. Em Campos, a Cristolândia funciona no Centro Terapêutico Élcia Barreto, no Jardim Carioca, pioneira no Brasil que possui 37. Simone já foi mula do tráfico de drogas, abastecedora, tesoureira e gerente na Vila Cruzeiro, no Rio.
Ela atravessava fronteiras transportando drogas e distribuindo em vários estados brasileiros. Esse contato com a droga que a fez ser usuária. Na ocupação do Estado na Vila Cruzeiro em 2011 que mobilizou todo o pais, Simone ajudou na fuga de amigos e parentes e também chegou a esconder droga na casa dela. Ela conta que recebeu livramentos de Deus. “Eu usava crack, ficava fora de mim, mas o livramento que eu conto é que mesmo sem discernimento eu não mexia na mercadoria que eu tinha que entregar. Se eu mexesse e o receptor da droga sentisse falta eu poderia ser morta”.
Com a saúde debilitada pelo uso do crack, ela pediu ajuda a uma amiga que a encaminhou para um pastor. Mas confessa que queria se recuperar e ganhar peso para retornar ao tráfico, mas foi impactada pela palavra de Deus e está completando 8 meses na Cristolândia. Ela tem receio de se considerar curada enquanto não terminar o tratamento. “Meu futuro pertence a Deus. Minha vontade é voltar para o Rio, ter contato com minha filha e neta, mas estou aguardando a vontade de Deus para minha vida”. Hoje Simone consegue ver que há cura para o dependente químico. Segundo ela com força de vontade e Deus no coração é possível vencer o crack. “Mas é necessário também que o amor volte a reinar no coração do ser humano. Falta amorno ser humano”.
As meninas chegam com marcas da violência no corpo e na alma e são tratadas; 60% são curadas e reinseridas no seio familiar, na sociedade e no mercado de trabalho (Foto: Carlos Grevi)
Tairini disse que perdeu tudo o que tinha para o crack e, por pouco, não perdeu a vida. O filho de 4 anos foi entregue pela mãe dela a uma mulher que cuida da criança. “Quero muito meu filho de volta. Nunca recebi amor de mãe, mas quero poder dar esse amor que não tive para ele, mas preciso me recuperar primeiro”. Tairini chora ao lembrar das agressões que sofria do ex-marido.
“No dia 20 de dezembro ele me jogou de cabeça para baixo do quarto andar de uma estação de trem, no Rio. Caí em pedras pontiagudas, tive um coágulo na cabeça e machuquei as pernas”, por pouco meu ex-marido não me matou. “Adquiri tuberculose e perdi um pulmão. Comia comida do lixo para ter dinheiro para comprar crack. Perdi uma irmã com 29 anos para o crack. Ela era usuária da droga”. Tairini está em recuperação na Cristolândia há pouco mais de uma semana.
As meninas têm aulas de estudos bíblicos e passam por um tratamento multidiscplinar com médicos, pscicólogos, assistentes sociais. A Cristolândia recebe doações das igrejas e o trabalho é voluntário.
Psicóloga Luisa (Foto: Carlos Grevi)
Luisa Marques é voluntária do projeto. Psicóloga, ela afirma que o crack é devastador e dá um prazer imediato ao usuário. Enquanto outras drogas levam de 10 a 15 minutos para fazer efeito, o crack começa a agir até o terceiro minuto após o primeiro trago que vai direto para o pulmão. “Como o pulmão é vascularizado, as substâncias chegam ao cérebro em poucos segundos e gera uma explosão de saciedade na área cerebral responsável pelo prazer. O cérebro registra esse prazer, o que gera o vício”, explicou Luisa.
Os danos à saúde, completa Luisa, também são imediatos. “Incide direto no processamento da informação e na memória. Quem usa crack, demora para processar as informações e tem perdas de memórias constantes”. A degradação do usuário de crack é provocada pelos maus tratos, falta de banho e agressões na rua. “Muitos têm os dentes arrancados, cabelos cortados, sobrancelhas raspadas, perdem a identidade”, conta. Luisa afirma que o cérebro tem a capacidade de se regenerar por meio de estímulos o que torna reversíveis os danos causados pelo crack, por mais devastadores que sejam. Porém todo procedimento deve ser acompanhado por uma equipe multidisciplinar.
A irmã Maria dos Santos Anjos conta que já foi criticada por ajudar aos pobres. “Mas quem critica é quem não doa e se sente incomodado vendo outros a doarem. Somos irmãos e um precisa do outro. Deus é pai e não deixa nos faltar nada por isso temos que repartir o que temos”