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Doação de órgãos: um ato que salva vidas e desafia preconceitos

O ‘sim’ que transforma um adeus em um novo começo para quem está à espera de um transplante

Especial J3
Por Leonardo Pedrosa
16 de março de 2025 - 0h01
Em 2024|Foram registradas 51 notificações de possíveis doadores, resultando em 14 captações efetivas em Campos (Foto: Silvana Rust)

Em 1º de março de 2025, Raíssa Rangel de Oliveira, uma jovem de 22 anos, transformou sua trágica partida em esperança para outros. Após um acidente em Campos, Raíssa se tornou a primeira pessoa na história da cidade a doar pulmões. Seu desejo de ajudar foi respeitado pela família, que autorizou a doação também de fígado e rins, salvando a vida de cinco pessoas na lista de receptores para transplante.

A doação de pulmões é rara devido à complexidade do procedimento e à escassez de centros especializados. No Estado do Rio de Janeiro, o programa de transplante pulmonar foi retomado após 15 anos, com o Instituto Nacional de Cardiologia realizando o primeiro transplante desse tipo em agosto de 2021.

A doação de órgãos pode ocorrer de duas formas: doador vivo ou falecido. No caso de doador vivo, a pessoa pode doar um dos rins, parte do fígado, da medula óssea ou parte do pulmão, desde que não prejudique sua saúde. Para doadores falecidos, a autorização da família é essencial.

Para quem deseja ser doador, a principal recomendação é conversar abertamente com os familiares, pois, na prática, é a família que dará a palavra final no momento da doação. Trata-se de um processo rigoroso e depende de uma coordenação eficiente entre as equipes médicas e a logística de transporte. A nefrologista Lílian Barreto explica:

Lílian Barreto (Foto: Arquivo Pessoal)

“Após a confirmação da morte encefálica, a Central de Transplantes é acionada e começa uma corrida contra o tempo para retirar e preservar os órgãos. A logística é importante no processo de transplante de órgãos, a ela cabe transportar e oferecer as condições corretas de armazenamento temporário, manuseio e conservação do órgão para que não exceda o tempo entre a retirada e a realização do transplante e ele esteja em perfeitas condições”, disse. Manter a temperatura e a integridade dos órgãos durante o transporte é crucial para o sucesso do procedimento.

Combate à desinformação
A decisão de doar órgãos dá uma nova chance de vida a quem aguarda por um transplante. Ainda assim, a desinformação e o medo fazem com que famílias optem por não autorizar a doação. Muitas famílias recusam por desconhecimento do processo ou insegurança em um momento de perda, então, a abordagem é um ponto importante.

Lílian destaca a importância da empatia no momento: “A abordagem da família é uma situação crucial para que o processo de doação seja realizado. É importante que o médico seja claro e objetivo, expondo que a doação pode salvar vidas, mas sempre respeitando a dor da perda, e principalmente, ter empatia”, disse.

Em nota, a Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (CIHDOTT) do Hospital Ferreira Machado (HFM) destacou que tem trabalhado para reduzir essas recusas, esclarecendo dúvidas e oferecendo apoio às famílias.

Além disso, CIHDOTT disse que investe no treinamento de suas equipes para garantir a viabilidade das doações e a integração entre profissionais. Campanhas de conscientização, destacando a importância de expressar o desejo de ser doador em vida e combater mitos relacionados à doação de órgãos, também têm sido promovidas. O índice de recusas no ano de 2024 foi de 35,30%, o que representou um resultado positivo, que ainda pode ser melhorado, segundo a Comissão.

A equipe do CIHDOTT é composta por médico, enfermeira, assistente social, psicólogos e agentes operacionais, mantendo contato diário com as famílias durante todo o processo até a confirmação do diagnóstico, autorização da doação e no período pós-doação.

Decisão difícil no momento de dor
O impacto da doação de órgãos vai além da parte médica. Envolve sentimentos complexos tanto para os transplantados quanto para as famílias. O psicólogo do NF-Transplantes, Luiz Cosmelli, explica:

“A família vive momentos de apreensão e ansiedade porque, muitas vezes, o processo de morte encefálica pode levar dias. Quando chega o momento da abordagem, levamos em consideração o desgaste emocional, as queixas e as diferentes opiniões entre os familiares. Mesmo assim, temos percebido que as famílias têm chegado mais informadas, com um olhar maior de solidariedade, no qual a dor se transforma nesse ato de solidariedade”, disse. O NF-Transplantes, sediado no HFM, está vinculado ao Programa Estadual de Transplantes do Rio de Janeiro (PET-RJ) e à Organização de Procura de Órgãos (OPO).

O apoio psicológico também é essencial para os transplantados, que enfrentam desafios emocionais como medo da rejeição do órgão, ansiedade e a sensação de uma “nova identidade” após o procedimento. Cosmelli ressalta que o acompanhamento profissional ajuda a equilibrar as emoções durante o momento delicado:

“O transplante não é cura, mas sim o melhor tratamento disponível, que oferece ao paciente uma qualidade de vida muito melhor. No entanto, é fundamental trabalhar as expectativas, os medos e a euforia, para que ele compreenda que precisará de cuidados contínuos. Esse apoio emocional é crucial para que o transplantado mantenha sua saúde e siga as orientações médicas de forma adequada”, disse.

Decisão|Mãe e irmã respeitaram desejo de Raíssa (de vermelho) pela doação (Foto: Arquivo Pessoal)

O relato de uma família doadora
A história da Raíssa exemplifica a importância da doação. Kettely Rangel e Tatiane Rangel, irmã e mãe da jovem, compartilham o impacto da escolha da família Rangel. “Foi uma decisão difícil, mas respeitamos o desejo dela de ajudar. Sabíamos que a Raíssa, de alguma forma, continuaria vivendo em outras pessoas”, lembra Kettely.

Para Tatiane, a doação trouxe um certo conforto em meio ao luto: “Na hora de assinar o papel da doação, é como se estivesse assinando uma sentença. Foi muito difícil, porém, depois da doação, acaba tendo uma sensação de conforto por saber que ajudamos e que ela vive, de certa forma, em outras pessoas”, comenta.

Dados de Campos
O ato impacta a qualidade de vida dos receptores, permitindo a retomada de atividades cotidianas. Porém, a demanda por órgãos ainda supera a oferta. Campos tem se destacado no cenário da doação de órgãos no Estado do Rio de Janeiro, mas enfrenta desafios que limitam o crescimento nos números. Em 2024, foram registradas 51 notificações de possíveis doadores, resultando em 14 captações efetivas total, sendo 10 córneas, 18 rins, nove fígados e um coração. A expectativa para 2025 é aumentar esses números, baseado no histórico local, por meio de campanhas educativas e maior integração entre as equipes de saúde.

Cada doação tem um grande impacto. Para quem recebe um transplante, não se trata apenas de um novo órgão, é a possibilidade de continuar vivendo, de retomar sonhos interrompidos pela espera.

Em Campos e em todo o Brasil, há pessoas aguardando por essa segunda chance. Manter o assunto vivo, falar com familiares e entender a importância desse gesto são passos fundamentais para que mais vidas sejam salvas.

“É necessário que haja um diálogo aberto com a família sobre o desejo de doar os órgãos e, ainda mais importante, que esse desejo seja respeitado. Afinal, depois da morte, a pessoa não poderá mais voltar para nós. Então, por que não transformar essa decisão em um ato de amor, capaz de salvar outras vidas? Embora não apague a dor, esse gesto de certa forma ameniza o sofrimento, fazendo o bem mesmo após a partida”, disse Tatiane Rangel, mãe de Raíssa.

Um simples ‘sim’ à doação de órgãos pode transformar um adeus em um recomeço.