Em 1º de março de 2025, Raíssa Rangel de Oliveira, uma jovem de 22 anos, transformou sua trágica partida em esperança para outros. Após um acidente em Campos, Raíssa se tornou a primeira pessoa na história da cidade a doar pulmões. Seu desejo de ajudar foi respeitado pela família, que autorizou a doação também de fígado e rins, salvando a vida de cinco pessoas na lista de receptores para transplante.
A doação de pulmões é rara devido à complexidade do procedimento e à escassez de centros especializados. No Estado do Rio de Janeiro, o programa de transplante pulmonar foi retomado após 15 anos, com o Instituto Nacional de Cardiologia realizando o primeiro transplante desse tipo em agosto de 2021.
A doação de órgãos pode ocorrer de duas formas: doador vivo ou falecido. No caso de doador vivo, a pessoa pode doar um dos rins, parte do fígado, da medula óssea ou parte do pulmão, desde que não prejudique sua saúde. Para doadores falecidos, a autorização da família é essencial.
Para quem deseja ser doador, a principal recomendação é conversar abertamente com os familiares, pois, na prática, é a família que dará a palavra final no momento da doação. Trata-se de um processo rigoroso e depende de uma coordenação eficiente entre as equipes médicas e a logística de transporte. A nefrologista Lílian Barreto explica:
“Após a confirmação da morte encefálica, a Central de Transplantes é acionada e começa uma corrida contra o tempo para retirar e preservar os órgãos. A logística é importante no processo de transplante de órgãos, a ela cabe transportar e oferecer as condições corretas de armazenamento temporário, manuseio e conservação do órgão para que não exceda o tempo entre a retirada e a realização do transplante e ele esteja em perfeitas condições”, disse. Manter a temperatura e a integridade dos órgãos durante o transporte é crucial para o sucesso do procedimento.
Combate à desinformação
A decisão de doar órgãos dá uma nova chance de vida a quem aguarda por um transplante. Ainda assim, a desinformação e o medo fazem com que famílias optem por não autorizar a doação. Muitas famílias recusam por desconhecimento do processo ou insegurança em um momento de perda, então, a abordagem é um ponto importante.
Lílian destaca a importância da empatia no momento: “A abordagem da família é uma situação crucial para que o processo de doação seja realizado. É importante que o médico seja claro e objetivo, expondo que a doação pode salvar vidas, mas sempre respeitando a dor da perda, e principalmente, ter empatia”, disse.
Em nota, a Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (CIHDOTT) do Hospital Ferreira Machado (HFM) destacou que tem trabalhado para reduzir essas recusas, esclarecendo dúvidas e oferecendo apoio às famílias.
Além disso, CIHDOTT disse que investe no treinamento de suas equipes para garantir a viabilidade das doações e a integração entre profissionais. Campanhas de conscientização, destacando a importância de expressar o desejo de ser doador em vida e combater mitos relacionados à doação de órgãos, também têm sido promovidas. O índice de recusas no ano de 2024 foi de 35,30%, o que representou um resultado positivo, que ainda pode ser melhorado, segundo a Comissão.
A equipe do CIHDOTT é composta por médico, enfermeira, assistente social, psicólogos e agentes operacionais, mantendo contato diário com as famílias durante todo o processo até a confirmação do diagnóstico, autorização da doação e no período pós-doação.
Decisão difícil no momento de dor
O impacto da doação de órgãos vai além da parte médica. Envolve sentimentos complexos tanto para os transplantados quanto para as famílias. O psicólogo do NF-Transplantes, Luiz Cosmelli, explica:
“A família vive momentos de apreensão e ansiedade porque, muitas vezes, o processo de morte encefálica pode levar dias. Quando chega o momento da abordagem, levamos em consideração o desgaste emocional, as queixas e as diferentes opiniões entre os familiares. Mesmo assim, temos percebido que as famílias têm chegado mais informadas, com um olhar maior de solidariedade, no qual a dor se transforma nesse ato de solidariedade”, disse. O NF-Transplantes, sediado no HFM, está vinculado ao Programa Estadual de Transplantes do Rio de Janeiro (PET-RJ) e à Organização de Procura de Órgãos (OPO).
O apoio psicológico também é essencial para os transplantados, que enfrentam desafios emocionais como medo da rejeição do órgão, ansiedade e a sensação de uma “nova identidade” após o procedimento. Cosmelli ressalta que o acompanhamento profissional ajuda a equilibrar as emoções durante o momento delicado:
“O transplante não é cura, mas sim o melhor tratamento disponível, que oferece ao paciente uma qualidade de vida muito melhor. No entanto, é fundamental trabalhar as expectativas, os medos e a euforia, para que ele compreenda que precisará de cuidados contínuos. Esse apoio emocional é crucial para que o transplantado mantenha sua saúde e siga as orientações médicas de forma adequada”, disse.
O relato de uma família doadora
A história da Raíssa exemplifica a importância da doação. Kettely Rangel e Tatiane Rangel, irmã e mãe da jovem, compartilham o impacto da escolha da família Rangel. “Foi uma decisão difícil, mas respeitamos o desejo dela de ajudar. Sabíamos que a Raíssa, de alguma forma, continuaria vivendo em outras pessoas”, lembra Kettely.
Para Tatiane, a doação trouxe um certo conforto em meio ao luto: “Na hora de assinar o papel da doação, é como se estivesse assinando uma sentença. Foi muito difícil, porém, depois da doação, acaba tendo uma sensação de conforto por saber que ajudamos e que ela vive, de certa forma, em outras pessoas”, comenta.
Dados de Campos
O ato impacta a qualidade de vida dos receptores, permitindo a retomada de atividades cotidianas. Porém, a demanda por órgãos ainda supera a oferta. Campos tem se destacado no cenário da doação de órgãos no Estado do Rio de Janeiro, mas enfrenta desafios que limitam o crescimento nos números. Em 2024, foram registradas 51 notificações de possíveis doadores, resultando em 14 captações efetivas total, sendo 10 córneas, 18 rins, nove fígados e um coração. A expectativa para 2025 é aumentar esses números, baseado no histórico local, por meio de campanhas educativas e maior integração entre as equipes de saúde.
Cada doação tem um grande impacto. Para quem recebe um transplante, não se trata apenas de um novo órgão, é a possibilidade de continuar vivendo, de retomar sonhos interrompidos pela espera.
Em Campos e em todo o Brasil, há pessoas aguardando por essa segunda chance. Manter o assunto vivo, falar com familiares e entender a importância desse gesto são passos fundamentais para que mais vidas sejam salvas.
“É necessário que haja um diálogo aberto com a família sobre o desejo de doar os órgãos e, ainda mais importante, que esse desejo seja respeitado. Afinal, depois da morte, a pessoa não poderá mais voltar para nós. Então, por que não transformar essa decisão em um ato de amor, capaz de salvar outras vidas? Embora não apague a dor, esse gesto de certa forma ameniza o sofrimento, fazendo o bem mesmo após a partida”, disse Tatiane Rangel, mãe de Raíssa.
Um simples ‘sim’ à doação de órgãos pode transformar um adeus em um recomeço.