A deficiência do sistema público de saúde e a falta de informação tornam ainda mais longo e doloroso o caminho de quem está na fila à espera de um transplante. Alguns encontram na própria família um doador compatível, mas, para quem não teve esta sorte, a espera pode ser demorada e o órgão chegar tarde demais. A realidade de um Brasil cheio de contrastes sociais também reflete no tratamento, pois, enquanto poucos estão protegidos pelos planos particulares, a maioria enfrenta o Sistema Único de Saúde (SUS), onde faltam até medicamentos usados para evitar a rejeição ao novo órgão.
A equipe de reportagem solicitou do Programa Estadual de Transplantes do Estado do Rio de Janeiro (PET) o número de campistas que aguardam por um órgão que possa lhes devolver a autonomia e aumentar a qualidade de vida, mas não obteve resposta. Já em todo o estado do Rio, nos últimos sete anos, o PET realizou cerca de 8,5 mil transplantes de órgãos e tecidos.
Histórias de vida
Um rim policístico levou o pastor Ismael José Ferreira, 74 anos, à fila de transplante após mais de 22 anos de tratamento. Ele realizou três sessões semanais de hemodiálise com duração de quatro horas cada uma, durante cerca de dois anos. Um sofrimento que a esposa Nely pôs fim ao se dispor a doar um de seus rins para Ismael. A cirurgia bem-sucedida ocorreu no dia 5 de junho e, desde então, o pastor tenta recuperar a rotina que foi transformada ao longo do tratamento.
“Estou muito feliz por receber esta nova chance e agradecido à minha esposa pela grande prova de amor. A hemodiálise é um processo muito desgastante, do qual estou livre a partir de agora”, disse o pastor.
“O rim foi parando, parando, até que parou de vez. Nesses sete anos em que o órgão funcionou, tive uma vida praticamente normal, valeu muito a pena passar pelo transplante e espero conseguir outro rim para ter paz em minha velhice”, comentou a paciente, que pretende se inscrever pela segunda vez no Programa Estadual de Transplante e voltar à fila de espera por um órgão.
Também preso a uma máquina está o destino de Thiago Luiz Corrêa da Silva Rocha, de 32 anos, pelo menos até receber um novo rim. Ele descobriu que era propenso a problemas renais ao se submeter a um exame admissional, aos 22 anos, mas na época não levou o alerta a sério. O uso de anti-inflamatório em excesso agravou a situação do funcionário público, que está há um ano e meio realizando sessões de hemodiálise.
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“Alguns dias eu acordo com esperança de receber um novo órgão. Em outros, já não fico tão otimista assim. É uma vida difícil essa que temos, mas sei que é muito importante ter fé”, ressaltou Thiago.
Dificuldades
Entre as muitas pedras no caminho dos pacientes que estão na fila do transplante, o médico nefrologista do Hospital Dr. Beda, João Carlos Borromeu Piraciaba, aponta duas grandes dificuldades: as carências do sistema público de saúde, que afetam as classes mais pobres, e a falta de informação, que reduz o número de doadores de órgãos.
Segundo Borromeu, o tratamento pré e pós-transplante penaliza mais àqueles que dependem do SUS. “A falta de imunossupressores pelo país, por exemplo, não é uma raridade. Esta classe de medicamento é de extrema importância para a terapia do paciente transplantado porque evita a rejeição ao novo órgão”, denunciou o nefrologista. Ele ressalta que os hospitais conveniados ao SUS também enfrentam dificuldades neste processo. “A tabela de procedimentos é bastante defasada e o repasse é sempre feito com atraso”.
Outra questão que prorroga a espera na fila do transplante é o número de doadores que, na análise do nefrologista, poderia ser maior se houvesse mais informação sobre o processo de doação de órgãos.
“Os protocolos de constatação de morte cerebral são extremamente seguros e muitas pessoas ainda têm dúvida em relação a isso. É importante que todos se conscientizem que, muitas vezes, um novo órgão pode ser a única chance de vida de alguém”, destacou Borromeu.
Sobre a precariedade do SUS, o Ministério da Saúde informou que, atualmente, o Brasil tem o maior sistema público de transplantes do mundo, com mais de 20 mil cirurgias realizadas por ano. Desde o início do século, já foram realizados mais de 335 mil transplantes. Os dados são de 2016.
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Ao contrário do que muitos imaginam, a fila de espera para transplante não funciona por ordem de chegada, conforme esclarece o nefrologista João Carlos Borromeu. Em vez disso, os critérios obedecem a condições médicas, cujos principais fatores determinantes são: compatibilidade dos grupos sanguíneos e gravidade da doença. Ainda segundo o médico, cada órgão tem uma fila específica e os pacientes que, geralmente, têm mais urgência, ou seja, menos tempo para aguardar o transplante são aqueles que dependem de um novo coração ou pulmão.
Só no Hospital Dr. Beda, do Grupo IMNE — pioneiro na realização de cirurgia de transplante de rim e no acompanhamento de pacientes renais na cidade — 170 pessoas realizam hemodiálise, das quais 34 estão na fila de espera.
De acordo com o Ministério da Saúde, atualmente, as maiores listas de espera são para realização de transplantes de rim, fígado e pâncreas/rim, respectivamente.
Prioridade regional
O paciente à espera de um transplante precisa estar inscrito no Cadastro Técnico Único. Apesar de o sistema de transplantes e a fila serem nacionais, as distribuições são regionalizadas. Isso significa que o órgão do doador é viabilizado para um receptor do mesmo estado. Isso acontece, primeiramente, por questões de logística de transporte. Além disso, considera-se o tempo de isquemia, isto é, o prazo de duração que o órgão resiste sem irrigação fora do corpo.
“Se um coração está disponível em Minas Gerais, o sistema busca, primeiramente, um receptor no mesmo estado. Se não for esse o caso e os critérios de prioridade não responderem à localização do doador, o órgão será disponibilizado para paciente mais próximo do estado e que atenda aos critérios médicos exigidos”, esclareceu o Ministério da Saúde em nota.