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No mês da Consciência Negra, a historiadora Maria Amélia Belisário reflete sobre legislação e racismo

Ela defende o engajamento da sociedade e dos governos, além de adoção de políticas públicas e mais investimentos em educação

Comportamento
Por Ocinei Trindade
26 de novembro de 2022 - 11h21
Maria Amélia Belisário (Foto: Arquivo)

Durante toda esta semana, o jornalismo do Terceira Via destaca temas relevantes que afetam a população negra do Brasil. Novembro é dedicado à reflexão sobre consciência negra no país. Na última edição, foi publicada a reportagem “É tempo de Consciência Negra” (clique aqui) que ouviu diversos profissionais. A professora, historiadora e advogada Maria Amélia Belisário é uma das vozes em Campos dos Goytacazes no combate ao racismo e ao preconceito. Ela defende o engajamento da sociedade e dos governos, além de adoção de políticas públicas e mais investimentos em educação, para a promoção social e igualdade racial no país.

Como cidadã, professora e docente em Curso de Direito, de que modo avalia as questões raciais no Brasil nos últimos anos, sobretudo após a criação do Dia da Consciência Negra há duas décadas?

As questões raciais são muito duras e cruéis no Brasil, tendo em vista o papel importantíssimo de quase cinco milhões de africanos que foram retirados de seu habitat natural, trazidos para o Brasil entre 1520 e 1850, sem considerar os períodos clandestinos do tráfico; pelo trabalho deles em diversas atividades econômicas do Brasil, como cana de açúcar, ouro e café.

Eu vejo que estabeleceu-se no dizer da ativista e escritora Cida Bento, em seu livro “Pacto da Branquitude”, é como se a população branca colocasse a população negra no lugar em que nunca deveria ter saído, das sensalas. Hoje, isso é personificado nas comunidades, no subemprego, nas periferias.

Qualquer política social ainda é vista como desperdício de verba pública. Vemos isto neste momento que estamos vivendo. A Lei 10.639/2003 propõe novas diretrizes curriculares para estudos da cultura afro-brasileira e africana. Eu acho fundamental como profissional do Direito. Vejo que a Lei procurou ressaltar a importância dos negros no processo de formação da sociedade brasileira. Ela é importantíssima, pois devem ser considerados como sujeitos históricos.

Também esta Lei instituiu o Dia Nacional da Consciência Negra, graças ao papel importantíssimo de intelectuais e políticos negros, como Abdias do Nascimento, uma pessoa inteligentíssima, um ativista com muitas vozes.

Considera que as pessoas pretas estão mais ou menos conscientes de seus direitos e relevância para o Brasil?

É difícil mensurar, mas pela presença crescente de estudantes negros nas universidades públicas e particulares isso é animador. Outro papel importante é feito pelas pastorais afro-brasileiras. Há uma semana, teve uma missa em Aparecida (SP) com a pastoral negra de São Paulo. Um número imenso de pessoas atuantes e interessantes.

Em maio, falei para 140 jovens da pastoral no Santuário dos Padres Redentoristas que prepara para o pré-vestibular. É alentador ver o interesse pelo conhecimento; a garra desses jovens que trabalham a semana inteira, e, no sábado, ficam o dia inteiro estudando com professores de alto nível que fazem um trabalho voluntário.

Acho muito relevante o papel da Subsecretaria Municipal de Igualdade Racial em Campos, com políticas que ocorrem pelo Brasil. São as nossas vozes que oportunizam essa consciência.

Suponho que já tenha sofrido algum tipo de abordagem racista. Como enfrentar esse tipo de situação do ponto de vista ético, moral ou legal?

Não resta a menor dúvida. Sofri duas vezes de maneira sutil, não tão grave como vejo hoje. Sempre estudei em escola pública. A primeira vez que me marcou foi quando iniciei o curso de História. Eu tinha só 18 anos. Ninguém se aproximava de mim. Eu era a única negra da sala. Estudei muito e obtive as primeiras notas, as mais altas. Depois disto, as pessoas passaram a me enxergar. Eu encarava isso na esportiva.

Em outro momento, durante uma festa que fui, em um clube muito chique de Campos, eu tinha 20 e poucos anos, de modo muito sutil uma dama da elite campista me perguntou quem tinha me convidado. Queria saber se eu era amiga da dona da festa e me fez muitas perguntas. Não me senti afrontada nem disposta à alguma ação judicial. A Lei Afonso Arinos, de 1951, tratava o racismo não como crime, mas como contravenção penal. Na prática, não levava a nada. Era um número muito pequeno de negros atuantes.

No trabalho como professora, isto não aconteceu. Os alunos sempre me trataram bem. Eu trabalhei em escola pública com muitos alunos negros. Acho que eles se sentiam representados na escola municipal e no Liceu de Humanidades. Eu costumava levá-los ao teatro e aos museus cariocas. Isso me aproximava muito dos alunos. Fazíamos muito teatro escolar.  

Sabemos que o racismo é um crime praticado contra várias etnias e, no Brasil, negros e indígenas sempre foram os principais alvos de crimes violentos e homicídios. De que modo observa esses dados e como enfrentá-los?

Vejo isto com tristeza, tendo em vista a grandiosidade e a complexidade da Amazônia. Tenho amigos militares de fronteiras que enfrentam muito problemas com grileiros, madeireiros, indígenas em estradas. Os problemas de terra são frequentes desde a chegada dos colonizadores no Brasil. Nos anos 1960, o problema das reservas indígenas demarcadas pela Funai era totalmente diferente do modelo americano, no qual a propriedade das terras passa a pertencer aos povos indígenas. No Brasil, a demarcação feita pela Funai são patrimônios inalienáveis da União, cedidas para posse e uso-fruto vitalício dos índios que são cada vez mais empurrados para reservas.

Muitos perdem o espaço de religiosidades e se entregam aos vícios, aos suicídios, ou vão trabalhar com mão de obra barata para os fazendeiros. Há muita controvérsia e violência nesse assunto, com denúncias repetidas de corrupção policial, violação dos direitos humanos. Creio que com o novo governo eleito que vai iniciar, o primeiro passo é reformular os quadros de servidores da Funai, com ambientalistas, antropólogos e profissionais comprometidos com a causa indígena e a preservação da Amazônia. 

O 20 de Novembro é uma data importante no calendário, mas sabemos que consciência de cidadania e humanidade deve ocorrer todos os dias. Qual a importância dessa data para a senhora?

Isto deveria ocorrer nos 365 dias do ano. No respeito, no trato, nas gentilezas em todos os níveis, no relacionamento do trabalho, na sociedade civil organizada, entre amigos. Mas é válido um dia para se repensar, para se refletir sobre a caminhada de minha gente que saiu dos porões dos navios negreiros, infelizmente, e conseguiu ressignificar todo o processo bárbaro pelo qual passou.

Nas leituras que gosto muito sobre questões africanas, a religiosidade e o culto aos orixás foram fundamentais para mantê-los de pé. Tenho muito orgulho da minha ancestralidade. Como educadora, sempre procurei despertar e valorizar isto nos meus alunos negros. Nos alunos brancos, o respeito mútuo. Que eles percebessem os privilégios da branquitude que sempre gozaram; que tivessem um novo olhar em relação aos colegas, como se estivessem na pele do negro.

Como despertar em si e nas pessoas a necessidade por lutas de igualdade racial?

É preciso combater todas as formas de violência racial, além de extinguir falas que se tornaram de clichê racista. Muitas pessoas falam e nem percebem. Precisamos de mais oportunidade, maior representatividade de trabalho para essa população. Na Faculdade de Direito, sugiro oportunizar os estágios para alunos negros nas Defensorias Públicas, para que eles atuem também com as populações mais simples. Precisamos de mais educação pública de qualidade. 

A senhora escreveu um livro que recorta um momento histórico dos negros em Campos, “Irmandades dos Homens Pretos – Sentidos de Proteção e Participação do Negro na Sociedade Campista (1790-1890)”. O que destacaria dessa obra?

Eu gostei demais dessa experiência. As irmandades eram organizações de afro-descendentes que praticavam um catolicismo com a incorporação de rituais próprios, incluindo músicas e danças africanas. Eu vi isso na Bahia, na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Eles têm os ritos em frente ao templo, seguidos de missa. Convivem com esse sincretismo de maneira muito clara e tranqüila.

Nas irmandades ocorriam cerimônias de caráter simbólico de preservação cultural, como a eleição de reis e rainhas, com referências à história africana. Há menções de anúncios no extinto jornal Monitor Campista, convocação de pessoas para essas eleições de outros cargos, como tesoureiro e escrivão. Havia uma permissão do Estado para essa corporação semelhante a de brancos.

Isto começou nas Minas Gerais com escravos que tinham alforrias, e que construíram igrejas com seus santos de preferências. Depois, isso se espalhou por Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro. No livro “Escravidão II”, de Laurentino Gomes, há menção de uma cidade baiana com irmandade formada só por mulheres afro-brasileiras. 

A finalidade principal das irmandades era dar assistência mútua, de recolhimento de fundos para adquirir alforrias dos seus irmãos que ainda continuavam escravizados. Era um espaço de visibilidade, Hoje, as Ong’s e as pastorais são espaços de visibilidade de apoio às populações negras, e que oportunizam trabalho, estudo e assistência jurídica.

O que mais destacaria a respeito deste mês reflexivo?

O racismo é estrutural, mas não há estrutura que não possa ser rompida com trabalho, educação, ética e com um Estado comprometido com essa causa em todas as esferas. A Constituição de 1988 criminalizou o racismo. O Estatuto da Igualdade Racial  (Lei 12.288/10) tem por objetivo  combater a discriminação racial  e as desigualdades raciais  que atingem  os afro-brasileiros,  incluindo a dimensão racial nas políticas públicas desenvolvidas pelo Estado.

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