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Entrevista: o sal da terra descrita

Jornalista Silvia Salgado faz da existência uma crônica de muitas vidas anunciadas

Entrevista
Por Ocinei Trindade
22 de dezembro de 2019 - 6h00

(Foto: Acervo pessoal)

Silvia Salgado costuma se apresentar como campista e torcedora do Goytacaz. Ela nasceu em um certo 2 de abril do século passado. Atravessou os tempos, as redações de jornais, a História do Brasil. Segue em travessias soltando os dedos sobre os teclados de computadores ou em anotações em qualquer papelzinho. Diz não saber precisar quantos anos de jornalismo possui, pois nasceu e cresceu dentro de um jornal. Recorda que, quando adolescente, já estava “catando milho” numa velha máquina Remington.

Nesta entrevista, Silvia Salgado resume um pouco de sua trajetória, além de abordar temas políticos que envolvem Campos, Rio de Janeiro e o Brasil. Cronista experiente, ela pretende reunir seus textos em livro, além de recuperar um antigo projeto de escrever a história da Casa Irmãos da Solidariedade que acolhe pacientes com HIV e AIDS. Depois de um período de luto devido à perda da irmã Cristina, Silvia está recomeçando. Nesta retomada, escrever é preciso, seja onde for. As ideias e opiniões com seu “tempero salgado” ajudam a refletir sobre a cidade, o país e o mundo.

O jornalismo faz parte de tua vida desde que você nasceu. O teu pai, Hervé Salgado, é uma lenda do jornalismo em Campos. O que representa esse ofício?

Não sei quantos anos tenho de jornalismo. Nasci e cresci dentro de um jornal. Adolescente, já estava “catando milho” numa velha Remington. Morávamos em cima do jornal A Notícia que pertencia a meu pai, Hervé Salgado Rodrigues, num velho sobrado na Rua 7 de Setembro. Dormia embalada pelo barulho das linotipos e da impressora. De dia, perambulava pela redação e pela oficina. Achava aquele mundo mágico. Muito cedo percebi que nascera no lugar certo. E agradecia a Deus por isso.

Você é uma cronista elogiada. Como surgiu o interesse por esse gênero literário?

Tinha uns 14 anos quando me apaixonei por crônicas. O Caderno B do Jornal do Brasil reunia os melhores cronistas do Brasil como Rubens Braga, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Carlinhos de Oliveira, Clarice Lispector. Cheguei para Hervé e falei: quero escrever crônicas. Me ensina, vai… Ele tirou os óculos e devolveu: “Então leia muito, muito. E, depois, venha conversar comigo”. Naquele dia ganhei uma assinatura do JB só para mim.

Em tempos de ditadura militar, a imprensa foi bastante patrulhada e perseguida. Como você recebe o retorno de movimentos de censura e até de invocação do Ato Institucional número 5 (AI-5) por segmentos sociais e de governo?

Quem me conhece na intimidade sabe que não comemoro aniversário. O responsável por isso foi o golpe militar. Era véspera do meu aniversário, minha avó fazia chuviscos para a minha festinha. Sem eu entender o porquê fomos levados para a praia de Atafona. No carro, meu pai dizia que iam empastelar o jornal. Criança, eu não tinha ideia do que acontecia. Hervé nos deixou e voltou para defender o jornal. Chorei a noite toda com medo de nunca mais vê-lo. De 1964 para cá, todo 2 de abril me tranco. Anos mais tarde o terror da ditadura voltou a entrar na minha casa. Sergio Escovedo, Serguei, jornalista de A Notícia, sumiu, levado pelo DOPs. Foi montada uma força tarefa para localizá-lo, felizmente vivo, em Niterói. Sem falar que fiz jornalismo político nos anos 1970/80 quando A Notícia abrigava “os meninos de Hervé”, como era chamado um grupo de jornalistas e intelectuais que tocava terror na ditadura. Era um estresse. A gente escrevia e rezava. Hoje, quando vejo pessoas de todas as idades e credos pedirem a volta da “maldita”, vejo que o Brasil não conhece o Brasil.

Por décadas, você e seu pai testemunharam fatos históricos na cidade, no Rio de Janeiro e no Brasil. Como avalia nossa trajetória?

O escritor José Cândido de Carvalho achava que a “pena de Hervé era maior que Campos” e o convidou a ir para o Rio escrever na melhor revista da época, “O Cruzeiro”. Meu pai respondeu que seria mais útil ele ficar em Campos, onde poderia lutar pela cidade. E através de A Noticia o vi travar lutas pela diversificação da agricultura, pela irrigação, pelos royalties, pela liberdade de expressão, pela cultura nas suas mais diversificadas vertentes. Acho que Campos, depois de tantas lutas, perdeu o bonde da história. Já foi uma “mulher” riquíssima, milionária, cobiçada, mas que teve a infelicidade de cair nas mãos de governantes que a maltrataram, a espoliaram. Éramos para ser a cidade modelo do país. Hoje pagamos o preço alto pela não aplicação dos recursos dos royalties e de não termos feito um fundo de investimento com parte desse dinheiro. Agora ficamos sem as usinas de açúcar, na iminência dos royalties serem divididos para todo o Brasil. O futuro tem cheiro de passado.

As redes sociais se tornaram instrumentos para muitas narrativas e também para fake news. Como lida com esse universo digital?

Uso as redes sociais com parcimônia. Faço comentários sobre política, sobre comportamento, sobre o que vejo e sinto. Essa ferramenta possibilitou que todos se sentissem “donos da verdade”, jornalistas de carteirinha, com direito a comentários sobre tudo, como se isso os fizessem importantes, desse visibilidade. Agora estão vendo que há uma legislação que regula a comunicação virtual. A tendência é esse “boom” se acomodar, deixar de ser a segunda pele das pessoas.

O texto impresso ainda tem um público fiel. Você tem preferência em relação ao formato de publicações?

O jornalismo impresso está no soro, em estado terminal. Infelizmente, sou obrigada a fazer esta constatação. Semana passada estava no Rio e encontrei a banca de jornal da qual sou freguesa, fechada. Me informaram que virou uma espécie de bar: vende cigarros, refrigerantes, cerveja, menos jornal e revista. Abre a partir do meio-dia. Respirei fundo, segurei as lágrimas, ganhei a rua lembrando que já enfrentei fila para comprar jornal. Leio livro de papel, folheando as páginas, marcando o que acho interessante. E a primeira coisa que faço de manhã, antes de tomar café é abrir um jornal.

O Brasil e o mundo estão constantemente em situações de crise. O que a crise ensina?

O mundo está sempre em crise: o homem passou por duas guerras mundiais, enfrentou pestes, vive se matando ao mesmo tempo em que reza para seus deuses. O Brasil desde que eu me entendo vive aos trancos e barrancos entre duas realidades: o país idealizado e o país real. Com a polarização na última eleição, mostrou sua verdadeira cara. Não somos um povo alegre, cordato e gentil como rezava a propaganda oficial que permeou gerações. Somos racistas, homofóbicos, misóginos e violentos. Precisou vir um Bolsonaro para que essa gente tivesse coragem de se mostrar. Acredito que o Brasil vive sob o estigma da escravidão que marcou com sangue e chibata a nossa História. Ainda não libertamos os escravos que se amontoam nas periferias, as senzalas dos tempos dos barões.

Você tem projetos literários e publicar livros com suas crônicas?

Tenho livros de crônicas para lançar, mas sou muito tímida, embora não pareça. Estou voltando a escrever a história da Casa Irmãos da Solidariedade que cuida dos portadores do vírus HIV. Uma história que daria filme, uma série de tão emocionante. É um projeto que interrompi com a doença e morte da minha irmã, Cristina. Ainda estou de luto. E esse luto me tirou a coisa que mais gosto de fazer: escrever. Mas estou voltando aos pouquinhos, à espera do milagre do renascimento.