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Padre Murialdo Gasparet: “Viver é um estado de milagre”

Sacerdote e intelectual reflete sobre fé, liberdade, esperança e os desafios da humanidade

Entrevista
Por Ocinei Trindade
29 de dezembro de 2025 - 0h01
Foto: Silvana Rust

Em entrevista ao J3News, o padre gaúcho Murialdo Gasparet, radicado em Campos há 25 anos, compartilhou reflexões sobre o significado da vivência da fé no mundo contemporâneo e os desafios que se impõem neste período de encerramento de ano. O religioso e intelectual focou nas dimensões espiritual, humana e social da data mais simbólica do cristianismo. Para o sacerdote, a fé dialoga diretamente com a realidade social e pode ser um instrumento de cuidado, acolhimento e responsabilidade coletiva.

Doutor e mestre em Teologia, psicólogo e psicanalista, o entrevistado também trouxe sugestões para o ano de 2026, enfatizando a necessidade de cultivar relações mais empáticas, atenção à saúde emocional e maior compromisso com valores como solidariedade, justiça e esperança. Ele ressaltou que a espiritualidade, quando integrada à vida cotidiana, ajuda a atravessar crises pessoais e sociais com mais consciência e sentido.

O período natalino e as festas de fim de ano envolvem pessoas do mundo todo. Até 6 de janeiro, comemoramos este momento. Qual o significado para o homem Murialdo, independentemente de ser sacerdote?
O Natal tem uma presença muito forte na minha família. Isso ocorre na vida de muitos. No Natal e neste período de fim de ano existe um encontro, não só pelo nascimento de Jesus Cristo, mas existe essa harmonia, um encontro da vida desde os tempos mais antigos. É uma época aguardada por muitos. Quando a gente não perde a essência, que é o nascimento de Jesus, tudo que tem ao redor nos acrescenta para presentear. E presentes são palavras, são gestos, são abraços. Presente é o clima de paz. Onde há paz, o pão é bom. A partilha é sempre algo bom. Onde não há paz e não há o encontro com Jesus, falta aquilo que é de dentro. O que nós ornamentamos por fora deve iluminar o interior de cada um de nós, para construirmos uma relação mais fraterna.

Este é um período que envolve muito comércio, viagens e consumo. Como o senhor observa este comportamento apesar da data religiosa que sugere introspecção e fé?
Penso que tudo aquilo que é exagerado, a gente vai aprendendo com a construção da própria experiência humana que passa. A gente começa a dar mais valor às coisas que não passam, que são eternas, que são para sempre. Todo mundo gosta de ser presenteado e valorizado. As coisas matérias estragam ou quebram. A magia do Natal e o mistério de Deus nos falam daquilo que é para sempre. O que vale é aquilo que deixamos com a nossa história. Não adianta ter uma mesa farta se há um conflito, se não há paz. A fraternidade do encontro nos faz celebrar uma alegria imensa. Devemos perguntar: qual é a nossa maior riqueza? Há coisas que eu não posso negociar. Eu não posso negociar a vida humana, a dignidade humana. Eu não posso negociar aquilo que é dos outros. Não posso viver um processo de escravizar, manipular, coagir o outro. A liberdade humana e a paz de espírito e de consciência não se negociam. Se alguém o faz, o preço é muito alto.

O preço dessas coisas tem sido muito alto na história da humanidade, não? Como o senhor observa os desafios de liberdade dentro do cristianismo e de outras religiões, individual e coletivamente?
A liberdade não há quem a entenda, não há quem não goste e não há quem a explique. Trata-se um pouco da resistência humana de um porquê que move a ciência até hoje, pois é uma pergunta de sentido. Quando a gente busca o sentido, a gente se encontra com a espiritualidade. Antigamente a humanidade trabalhava assim: “eu/ele”. Depois, “eu/eles”.  Agora é “nós”. O mundo todo só funciona se formos “nós”. E isto com diferenças, pois a diferença nos enriquece. A diferença é vida, é maravilhosa. Pensar diferente é uma coisa maravilhosa. Pensar igual a vida perderia a graça. Aquilo que a gente polariza e se aproxima da intolerância, os extremismos, mesmo que eu não concorde, eu tenho o dever de deixar que você pense como você pensa; que você viva o que pensa. Isto é uma construção de maturidade. Claro que é preciso ter cultura e abertura. Esse individualismo, conforme o mundo vai evoluindo e temos mais informações, isto pode nos deixar mais ansiosos. Costumo dizer que nós não somos do nosso tempo, nem melhores nem piores que no passado.

Neste momento da humanidade, como atentarmos sobre os milagres. O que é isto em 2025 e o que poderá ser em 2026? Como o senhor define a palavra “milagre”?
Todo amanhecer, todo dia é um milagre. Viver é um estado de milagre. Poder ser para os outros, isso é viver um milagre não só para si. Isso nos ensina o quanto nós podemos fazer. O gostar de todo mundo é algo pessoal, a gente ama todo mundo. Esse é o grande passo para o milagre: amar a todos. Gostar não basta. Gostar de alguém só porque é bom não basta, não é justo. Eu posso ser bom e não ser justo. Lidamos com todos no dia a dia.

Como o senhor observa aqueles que dizem ter perdido a fé, romperam com o catolicismo e outras crenças cristãs e se tornaram “desigrejados”?
Uma vez, perguntaram a alguém o que este poderia ser dentro do catolicismo. Responderam: “padre, bispo e até papa”. Aí, perguntaram a um judeu o que este poderia ser. Ele respondeu: “eu posso ser até Jesus Cristo”. Eu costumo dizer para as pessoas que “para a casa a gente sempre volta”. Podemos ficar longe, darmos uma volta, mas voltamos para casa em algum momento. Esse retorno pode ser por dor ou luto. São caminhos diferentes. O apóstolo Paulo a caminho de Damasco caiu do cavalo; em outro momento alguém foi chamado pescando ou consertando redes. Os lugares dos chamados são diferentes que Deus vai fazendo para a gente. O Museu do Amanhã no Rio de Janeiro nos propõe questionarmos de onde eu vim, quem eu sou e para onde vou. São perguntas que existem desde sempre. Por isso, esse mistério e essa beleza da vida, da pergunta e da busca. Existem caminhos diferentes para chegar lá. Nós queremos um mundo melhor com paz e segurança, ir e vir, cantar e viver. Há muito mais proximidade dentro de um contexto de pensamentos religiosos do que diferenças. As diferenças são ritos e formas, mas na verdade somos muito mais do que irmãos.

O senhor é um pesquisador, além de professor ao ajudar a formar médicos e psicólogos, além de teólogos. Como observa a ciência e a religião nestes tempos?
Eu trabalho na Faculdade de Medicina lecionando Espiritualidade e Saúde. Destaco muito o que a ciência ou a medicina fala hoje. Raiva, rancor, ressentimento nos adoecem. Perdão e misericórdia nos dão equilíbrio e paz; menos proporção de termos um infarto cardíaco, além de boa recuperação quando se tem um sentido para lutar contra algumas doenças terríveis e que não podemos desanimar. Aquilo que junto com a ciência nos fortalece. Perguntamos às vezes: para que serve o horizonte se não o alcançamos? É para poder caminhar e ter esperança. Este ano é o do Jubileu da Esperança para a Igreja Católica. O Papa Francisco nos dizia que “somos todos peregrinos da esperança”.

Como ter esperança, fé e amor ou caridade nos tempos de hoje?
Há uma santa que diz “ama e faz o que você quiser”. Há muitos tipos de amor, um deles é o Ágape, ou seja, desinteressado. Jesus fala muito nesse amor que é uma busca incessante. Algumas pessoas alcançaram, mas não sem limitações ou quedas. Este amor te leva a compreender a fé. Costumo citar o astrofísico Marcelo Gleiser que alcançou a espiritualidade sendo um cientista. Se a gente tem fé na vida, as coisas se encaixam. Por exemplo, ter um ano novo melhor. No fundo, todos nós temos fé nisso. É difícil ser ateu.

Qual a mensagem que gostaria de dar para as pessoas sobre 2026?
Precisamos escutar mais. Às vezes, falamos muito e escutamos pouco. Precisamos aprender  que o primeiro livro que as pessoas lêem somos nós mesmos. Quando isso não funciona, não adianta palavras bonitas. As pessoas lêem quem nós somos. Permita que o Senhor nasça em seu coração. Este coração só tem uma maçaneta do lado de dentro. Portanto, abra e permita abrir para a vida e para quem se ama, para todos. Deixa que o Senhor Jesus faça um encontro pessoal com Ele, pois Jesus fará algo novo e renovado a cada dia e a cada ano. Aceite e apresente isso com esperança e alegria.