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Arte que pulsa nas ruas de Campos

De algum modo, malabaristas, músicos e outros artistas buscam sobreviver, entreter e divulgar cultura

Clube J3news
Por Ocinei Trindade
14 de julho de 2024 - 0h01
Fotos: Silvana Rust e Divulgação/UFF

No trânsito tumultuado de Campos dos Goytacazes, as paradas dos veículos em alguns semáforos podem gerar segundos de alívio e entretenimento. Equilibristas, malabaristas, cantores ou músicos se apresentam nas ruas da cidade. Eles tentam alegrar e distrair pessoas que, geralmente, estão apressadas e estressadas. Após as breves exibições, estendem a mão e pedem alguma contribuição em dinheiro. De moeda em moeda, os artistas de rua tentam garantir a sobrevivência. Há também quem se apresente como voluntário nas vias apenas para entreter ou chamar à atenção para alguma causa. É o que fazem os percussionistas do Aqualtune, coletivo de estudantes da Universidade Federal Fluminense.  

Há quem não considere a atuação dos artistas de rua um trabalho. Apesar da informalidade, eles enfrentam jornadas que variam de 8 a 10 horas nas vias públicas, tentando vender e agradar motoristas e passageiros nos sinais de trânsito. Esta é a rotina de Wilper Roberto Yagual Quimis. Nascido no Equador vive em Campos há quatro anos. Fixou residência porque se casou com uma campista. Durante 12 anos, percorreu 11 países da América Latina como artista de rua. A reportagem encontrou com o equatoriano no cruzamento das Avenidas 28 de Março e José Alves de Azevedo, equilibrando guarda-chuva, bola e fazendo malabarismo. “Estou no Brasil há 15 anos. Percorri todos os estados. Na Bahia, trabalhei no circo. Há dias que consigo de R$40 a R50 nos sinais, mas também posso não receber nada. Preciso garantir o aluguel que custa R$500. Chego a ficar 10 horas me apresentando. Não é fácil, principalmente em dias de muito calor. Costumo ter dores de cabeça por estar muito tempo sob o sol e respirando fumaça dos carros”, conta.

Wilper Yagual

Wilper conta que quando morava em Guaiaquil, uma das maiores cidades do Equador, chegou a ter quatro trabalhos formais. Graduado em Psicologia, trabalhou na polícia equatoriana, mas não se sentia feliz ou realizado. Ele também é músico e artesão. “Não era fácil por eu não me adequar ao sistema. Prefiro as ruas por conta da saúde mental. É importante para mim. Minha mãe não entende, por eu ser formado e ter estado na polícia equatoriana, optar pela arte e pela rua. Meu sonho é criar um centro cultural em Campos e abrigar todo tipo de arte. Sinto falta do Equador, estive lá há um ano para sepultar meu pai, mas minha vida hoje é aqui”, revela.  

O argentino Alejandro Avalos é outro artista de rua que se apresenta nos sinais de trânsito em Campos. Ele está há dois meses na cidade. Deixou Buenos Aires 11 anos atrás e veio para o Brasil em busca de vida melhor. “Em meu país, trabalhei na zona rural, em plantações. Aqui, já morei em São Paulo e Rio de Janeiro. Antes de Campos, trabalhei na manutenção de uma pousada em Búzios e como operário em Maricá, onde calçava ruas. Também fui pescador. Quando fico sem trabalho formal, vou para as ruas fazer malabarismo”, diz.

Segundo o argentino, ele já conseguiu R$150 em um dia bom de apresentação. “Isso depende do dia. Às vezes, consigo quase nada ou nada. Vou ficar mais algumas semanas em Campos. Quero seguir para Minas Gerais e Bahia, pois ainda não conheço. Até achar um emprego formal que me dê alguma garantia mínima vou atuar nas ruas. Gosto mais de me apresentar à noite, por causa do calor e para fazer números com fogo e acrobacia”, explica Alejandro.

Alex Ruas – Foto: Divulgação/UFF

Tambores pelas ruas
Desde 2023, em algum momento ou lugar, pessoas de Campos ouviram o rufar de tambores bem marcados por um grupo de percussionistas. São os integrantes do coletivo Aqualtune, da Universidade Federal Fluminense. A maioria é formada por estudantes de Psicologia. O professor Alexander Ruas é um dos responsáveis por ensaiar e coordenar os dublês de músicos. A apresentação gratuita mais recente aconteceu no Calçadão, área central da cidade. Não foi difícil chamar à atenção e despertar a curiosidade do público. Alguns arriscaram passos de dança do ritmo envolvente. “O coletivo surgiu a partir da percepção de que não há atividades musicais no polo da UFF – Campos, ao mesmo tempo em que existem muitos estudantes interessados em fazer música. Eu sempre trabalhei com o tema da saúde mental e música; o tema do mestrado foi esse e no Rio toco em dois grupos de percussão. Então, fui juntando as experiências com os desejos dos estudantes, e saiu a Aqualtune, nosso grupo”, explica Alex Ruas, professor da UFF que leciona nos cursos de Serviço Social, Ciências Sociais e Psicologia. “Dou aula de psicologia social, dinâmica de grupo, prática de pesquisa e estágio” revela.

Foto: Divulgação/UFF

O Aqualtune é composto por pessoas interessadas em aprender, aprofundar e trocar conhecimentos sobre percussão de matriz afro-brasileira através de oficinas musicais. Sabe-se que ritmos como ijexá, samba, coco, maculelê, funk, samba-reggae, dentre muitos outros surgem a partir dos ritmos africanos usados na cultura de Angola, Benin e Nigéria, que são trazidos para o Brasil e mesclados aos ritmos indígenas na diáspora africana. As oficinas ocorrem semanalmente no polo da UFF Campos.

Foto: Divulgação/UFF

Apresentação nas ruas
Assim como os malabaristas nos sinais de trânsito, instrumentistas de diferentes estilos costumam provocar reações nas pessoas que passam pelas ruas da cidade de Campos. Para o professor da UFF, Alex Ruas, a recepção do público não costuma ser indiferente. “Entendo que a falta de manifestações culturais de rua no centro de Campos, principalmente de um grupo de percussão, faz aguçar a curiosidade e produzir interesse. No tempo que ando pela cidade, nunca vejo a arte como foco. É um pouco esse o nosso objetivo: levar a música percussiva afro-brasileira para quem está na rua e deseja ouvir. Nas minhas aulas, sempre levo a música de diferentes maneiras, seja através de letras, tocando ao vivo ou colocando clipes que são pertinentes. Acho que a formação em Psicologia ainda precisa se abrir mais às artes, mas estamos nesse caminho. Quando eu me formei, não havia muito sobre o assunto. Hoje já temos disciplinas eletivas, projetos de extensão, pesquisa e publicações, além de práticas  artísticas nos dispositivos de saúde mental, como os CAPS, por exemplo”.

O docente, psicólogo e instrumentista considera fundamental o consumo e a produção de arte por profissionais de Psicologia. “É através da arte que fortalecemos os vínculos com a criação, o improviso e o senso de coletividade. A arte é item básico na formação do ser humano e na produção de saúde mental. Foi ela que nos sustentou emocionalmente durante a recente pandemia, e em vários outros momentos de crise da história. Gilberto Gil costuma dizer que ‘é item de sobrevivência; deve estar na cesta básica de todo brasileiro’. A arte nos alivia, faz a gente mexer o corpo, tem potencial de reduzir a ansiedade, nos dá a sensação de pertencimento grupal; e, quando a produzimos, conseguimos nos expressar melhor e dar passagem às emoções que às vezes não conseguimos através da fala”, conclui.