O geógrafo marinho Eduardo Bulhões é professor e pesquisador da Universidade Federal Fluminense, em Campos dos Goytacazes. Há anos, ele se dedica a estudar fenômenos que envolvem o processo de erosão na costa fluminense. O avanço do mar é apenas um dos temas de interesses e relatos científicos produzidos por ele. Este é o assunto da reportagem especial do J3News, “Mar avança e preocupa praias da Região Norte” (leia aqui).
Bulhões concedeu uma longa e esclarecedora entrevista acerca da erosão que acomete as praias de São Francisco de Itabapoana, São João da Barra, Macaé e Rio das Ostras. De acordo com sua pesquisa, o litoral de Campos dos Goytacazes é o que mais preocupa no momento, devido à destruição provocada no litoral. A praia campista perdeu cerca de 130 metros de faixa de areia nas últimas quatro décadas. Partes da restinga, da estrada e algumas construções estão ameaçadas.
Como analisa a situação da costa regional que tem registrado frequente avanço do mar e erosão? Quais as principais causas?
Em litorais arenosos, uma das características mais relevantes de serem compreendidas é a instabilidade da posição da linha de costa, das praias. As praias são ecossistemas dinâmicos, que se movimentam muito, e os fenômenos naturais como os ventos, as ondas, as marés e em mais longo termo, as oscilações do nível do mar promovem mudanças no estoque, no transporte e na posição das areias que formam as praias. Outros elementos integrantes dos ecossistemas costeiros são os bióticos, e daí falamos tanto das espécies vegetais e animais da restinga e dos manguezais, como também dos recifes de coral que também são importantes. As ações promovidas pelo homem também interferem na dinâmica das praias (positiva ou negativamente), e tudo isso é tema de interesse da Geografia Marinha.
Na prática, todas as praias sofrem períodos de perdas e períodos de ganho de areias ao longo dos anos, e isso funciona mais ou menos sazonalmente. No verão, as condições ambientais menos intensas possibilitam acumulação de areias. No inverno, há uma inversão nessas condições e as praias tendem a perder areias. A essas oscilações damos o nome de balanço sedimentar, que é como um ‘saldo’ da quantidade de areia em uma praia. Esse ‘saldo’ pode ser positivo (a praia recebe mais areias do que perde); negativo (a praia perde mais areias do que recebe) ou neutro (a praia recebe e perde areias na mesma quantidade). A isso damos os nomes, respectivamente, de acreção, erosão e estabilidade.
Considerando os municípios aqui da região entre São Francisco do Itabapoana ao norte e Rio das Ostras ao sul, temos um litoral de aproximados 200 km. A tendência que podemos constatar para esse litoral é de que 32% estão em erosão; outros 34% estão em acreção; e outros 33% encontram-se em estabilidade. Ou seja, um terço da linha de costa da região sofre algum grau de erosão, seja ele mais ou menos intenso, e isso varia de município para município. Campos, por exemplo, está em primeiro lugar, uma vez que 58% da orla apresenta algum grau de erosão quando são comparados dados dos últimos 40 anos. Enquanto isso, no mesmo período, Macaé tem apenas um trecho de aproximados 3km (9%) com tendência erosiva.
Quanto à intensidade do fenômeno erosivo, a condição mais crítica é quando as taxas de erosão são superiores a 5 metros por ano, condição na qual chamamos de erosão extrema. No mundo, apenas 4% das praias apresentam esse padrão. Aqui na região esse percentual é pequeno, de 1,5%, e está concentrado em posições junto à foz do Rio Paraíba do Sul, na localidade de Atafona e na Ilha da Convivência.
Quanto às causas da erosão, devemos lembrar que sempre há um desequilíbrio no volume de areias em consequência das perdas serem superiores ao suprimento desses materiais para o segmento de praia específico em questão. E esse desequilíbrio pode ter várias causas, mas está associado principalmente à incapacidade da praia se recuperar após um evento específico e esporádico de ‘ressaca’. Isto é mais comum em praias urbanas (calçadão construído sobre a areia da praia e/ou dunas frontais, por exemplo); ou está associado a uma interrupção parcial ou total no transporte de areias que chega e se movimenta ao longo do litoral. Isso está normalmente associado à construção de barragens em rios (gerando redução nas vazões líquidas e sólidas), atividades de mineração de areias nos leitos fluviais; e/ou construção de grandes estruturas costeiras (como espigões, molhes, guias-correntes).
O fenômeno mais conhecido está em Atafona, São João da Barra, mas a reportagem tem registros da erosão crescente em Farol de São Thomé, praias de São Francisco de Itabapoana, Macaé e Rio das Ostras, entre outros, nas últimas décadas. Até que ponto as alterações climáticas e ações humanas agem nesses locais?
Atafona é, de fato, o exemplo mais conhecido do país sobre o tema. Existe grande repercussão nacional e internacional, uma vez que o processo erosivo é crônico e extremo, pois está ocorrendo há décadas em razão das taxas de erosão serem superiores a 5 metros por ano. Soma-se a isso o fato de centenas de edificações e dezenas de quadras já terem sido destruídas pelo fenômeno erosivo. O cenário impressionante de Atafona é resultante de décadas de um fenômeno incessante, e também de omissão em relação à medidas de controle do fenômeno erosivo. Atafona, pode ilustrar de forma didática algumas das causas relacionadas à ação humana, que se repetem também em outros municípios litorâneos brasileiros.
No Brasil, a maior parte do litoral foi e permanece sendo ocupada, quando muito, com planejamento urbano precário. Apesar de termos uma legislação suficiente do ponto de vista da gestão de praias e orla marítima, o que há nas leis e decretos federais não vem sendo respeitado e aplicado no nível local. No geral, o interesse imobiliário nas áreas litorâneas é elevado em razão do valor da terra nessa porção do território. Para que isso se viabilize, loteamentos e terrenos são vendidos e empreendimentos grandes, médios ou pequenos são construídos sobre (e aplainando) praias e dunas; sobre e suprimindo áreas de restingas e áreas de mangue; sobre e aterrando áreas litorâneas alagadas, sem de fato se respeitar os limites ativos desses ecossistemas costeiros. Então, podemos dizer, sem medo de ser injusto, que muitas áreas no país hoje ocupadas por casas, praças e avenidas estão em áreas geologicamente instáveis e inapropriadas ao longo do litoral.
Outros tipos de ações humanas estão relacionados ao uso dos recursos hídricos. Faz sentido mencionar isso, uma vez que as principais fontes de areias para as áreas litorâneas são os rios. Na medida em que os rios perdem a capacidade de transportar areias em direção ao mar, há um desequilíbrio no balanço sedimentar. Em algum lugar, essas areias vão fazer falta e, potencialmente, detonar em algum grau o processo erosivo.
O déficit de areias que justifica o exemplo de Atafona está associado a um uso intensivo dos recursos hídricos no Rio Paraíba do Sul. Algo semelhante acontece junto à foz de outros rios, como na localidade de Belmonte-BA; foz do Rio Jequitinhonha; Regência-ES, junto à foz do Rio Doce; Cabeço-SE junto à foz do Rio São Francisco, só para ficar em alguns poucos exemplos. É também necessário reconhecer que existem os fatores puramente naturais nessa dinâmica, e muitas vezes a determinação exata das causas da erosão é dificultada por esbarrar nessa mistura de fenômenos.
A construção de grandes obras de infraestrutura junto ao litoral, como os portos por exemplo, traz consigo a necessidade de obras portuárias robustas como molhes, espigões e quebra-mares. Todas essas obras trazem impactos positivos para o desenvolvimento; e negativos para o meio físico nas áreas litorâneas adjacentes, uma vez que geram impactos imediatos no balanço sedimentar.
No geral, após a instalação dessas obras, há a tendência de acumulação de areias em determinados trechos e tendência de erosão em outros trechos do litoral próximo. Existem, obviamente, medidas para contornar os impactos negativos, mas essas nem sempre são a principal preocupação desses projetos. Até mesmo obras de proteção em áreas urbanas que são realizadas justamente para interromper o problema erosivo, geram impactos negativos em áreas adjacentes fazendo com que a erosão seja transferida para outro lugar. Existem vários desses exemplos no país.
O desafio das mudanças climáticas está definitivamente posto. A ciência já detectou um aumento na altura média das ondas no Atlântico Sul, associado a um aumento na energia dos ventos que sopram sobre o oceano. O aquecimento do planeta leva a uma intensificação da energia e mudança das trajetórias dos sistemas atmosféricos, como os ciclones sobre os oceanos, o que se traduz em eventos de ressacas excepcionais cada vez mais frequentes e intensas.
O fenômeno das ondas de calor também está mais frequente nos dias atuais e, na prática, quanto mais quente o planeta, mais evidentes serão as alterações nos ecossistemas litorâneos e a capacidade regenerativa dos mesmos pode ser negativamente alterada. Nas áreas continentais, os fenômenos opostos como o das secas prolongadas, assim como o das chuvas mais intensas, se traduzem em alterações nos fluxos de água e sedimentos nas bacias hidrográficas, o que pode efetivamente alterar a estabilidade junto às áreas de foz.
Os cenários climáticos futuros estão baseados em projeções de emissões de GEEs (Gases de Efeito Estufa) e para cada um dos cenários – seja o RCP 4.5 (mais otimista), onde as ações são tomadas para reduzir as emissões e limitar o aquecimento global; seja o RCP 8.5 (mais pessimista), com altas emissões e consequências graves para o clima e o planeta. As modelagens climáticas e projeções futuras dos efeitos na linha de costa já estão sendo disponibilizadas e validadas para entender os graus de avanço da erosão costeira no litoral do país.
Posto tudo isso, os cenários de erosão nos diferentes municípios da região têm causas distintas e projeções futuras de evolução também distintas. Cabe entender localmente o fenômeno erosivo para buscar a melhor solução para controlar o problema.
As cidades brasileiras concentram grande população na faixa litorânea do país. Como observa sobre esse tipo de urbanização e ameaças que as cidades correm com o avanço do mar?
No Brasil, existem 279 municípios defrontantes com o mar, distribuídos por 17 Unidades da Federação. Destes municípios, 11% possuem menos de 10 mil habitantes; 68% possuem entre 10 e 100 mil habitantes; 15% possuem entre 100 mil e 500 mil habitantes; 4% possuem entre 500 mil e 1 milhão de habitantes; e 2% possuem mais de 1 milhão de habitantes, dentre eles capitais como Rio de Janeiro-RJ, Salvador-BA, Maceió-AL, Recife-PE e Fortaleza-CE e São Luís-MA.
Apesar de tudo, a maior parte do litoral brasileiro é rural (87%) e as áreas urbanizadas constituem apenas 7% da área desses municípios litorâneos. Tal constatação parece vantajosa, uma vez que sabemos exatamente onde atuar de forma concentrada para promover melhores ações de controle da erosão costeira. Apesar de 9 em cada 10 municípios litorâneos possuir algum trecho em erosão, os segmentos nos quais a erosão é extrema estão distribuídos em apenas 3 de cada 10 dos municípios da zona costeira brasileira.
Esses dados apontam também uma preocupação que se faz evidente: como e quando serão ocupadas no futuro as vastas áreas ainda não urbanizadas no nosso litoral? Podemos contar com ações planejadas que visem a manutenção da funcionalidade dos ecossistemas costeiros ? Podemos contar com um planejamento urbano que considere as tendências erosivas e os cenários de mudanças climáticas ao longo do litoral ?
Os principais riscos às cidades litorâneas são claramente os fenômenos erosivos, mas também os eventos de inundação costeira. Recentemente, o Programa para o Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas divulgou um relatório que recebeu muito destaque, pois apresentou uma lista das 10 cidades costeiras do mundo que podem ser submersas até o fim do século, em caso de agravamento do aquecimento global. Além da cidade do Rio de Janeiro-RJ, a cidade de Santos-SP também aparece no documento. O relatório projeta que, sem a presença ao menos de defesas costeiras, até 2100, 5% ou mais dos territórios dessas cidades podem ficar permanentemente abaixo do nível do mar.
Tanto para os eventos de erosão, quanto para os eventos de inundação, as áreas costeiras precisam efetivamente reconsiderar os padrões das estruturas de proteção costeira, buscando medidas de controle desses fenômenos que sejam mais adaptativas e sustentáveis; para que de alguma forma se inverta a lógica atual que, diante de problemas erosivos vinculados à urbanização das faixas litorâneas, opta-se por artificializar ainda mais tais segmentos litorâneos, em busca de mitigar os impactos negativos da artificialização anterior. Esse modelo tem se mostrado inadequado mundo afora.
A construção de barreiras ou quebra-mares é capaz de frear ou minimizar o problema? Que obras seriam necessárias para evitar mais danos em Atafona e cidades vizinhas, por exemplo?
Diante de ameaças como a erosão e inundação em áreas litorâneas, usualmente considera-se a construção de uma ou mais obras de proteção. A primeira percepção junto ao senso comum é que blocos de pedras e muros de cimento são suficientes para estabilizar o litoral. E isso é incorreto.
A primeira lição a ser apreendida é que nenhuma opção de estabilização da linha de costa consegue interromper permanentemente a erosão costeira, em nenhuma escala de tempo. O nível de proteção de uma obra depende da opção escolhida, dos recursos financeiros disponíveis, das dimensões do projeto e das condições específicas da área em erosão. Todas as opções de defesa do litoral precisam de manutenção, com maior ou menor frequência, e requerem propostas de mitigação dos impactos ambientais negativos que proporcionam nas áreas adjacentes.
Em termos gerais, as obras de defesa do litoral são destinadas a gerenciar o transporte de areia, estabilizar ou expandir a praia para protegê-la contra a erosão. Essas intervenções podem ser categorizadas como “obras artificiais” ou “obras naturais”. As primeiras, também conhecidas como “obras rígidas” ou “obras cinzas”, são necessárias em áreas onde o transporte litorâneo é predominante e geralmente envolvem estruturas defensivas perpendiculares ou quase perpendiculares à costa, como espigões, guias-corrente e molhes. Em regiões onde o transporte litorâneo é menos significativo, as obras devem ser planejadas de forma paralela à costa, com o objetivo de fixar a posição da linha costeira ou mitigar os efeitos das ondas. Exemplos dessas intervenções incluem quebra-mares destacados e revestimentos como muros ou paredões.
Por outro lado, as obras classificadas como “naturais” têm o propósito de imitar artificialmente os efeitos benéficos das praias e dunas como formas naturais de defesa costeira. Uma das intervenções principais nesse contexto é o preenchimento artificial de praias, frequentemente chamado como “engordamento de praia”, “recuperação artificial de praia” ou simplesmente “aterro”. Outras estratégias incluem sistemas de transposição artificial de areias e a criação, recuperação ou fixação de praias e dunas. Geralmente, essas intervenções são realizadas em conjunto com as “obras rígidas” ou são utilizadas como medidas mitigadoras dos impactos causados pelas intervenções iniciais.
Outras alternativas frente à ameaça da erosão costeira e aos projetos de defesa do litoral que merecem destaque, são os mecanismos e estratégias de acomodação, retração e sacrifício. Acomodação significa conviver com o risco. Isso implica um planejamento avançado que pode determinar um conjunto de ações que incluem a elevação de determinadas estruturas em áreas onde ocorrem inundações, códigos e planos de construção e de uso e ocupação do solo mais restritivos, reestruturação dos sistemas de drenagem, sistemas que alertem as comunidades sobre a ocorrência de tempestades, incluindo ou não planos de evacuação, e no nível regional, proibição de construção de barragens e mineração de areias.
Já retração e sacrifício tratam-se de medidas não estruturais de combate e adaptação aos impactos adversos da erosão costeira. De forma simples, no primeiro caso, trata-se de remobilizar a estrutura construída para terrenos à retaguarda, fora do alcance da área em erosão. No segundo caso, trata-se de uma opção de “fazer nada” frente à erosão costeira. Tais medidas podem ser planejadas ou não, e, na prática, a segunda é mais comum (e pior) do que a primeira.
Nos dias atuais, há também um crescimento no número de iniciativas da chamada “eco-engenharia” que buscam avaliar a contribuição dos ecossistemas costeiros e estuarinos para a defesa do litoral. Os chamados serviços ecossistêmicos de defesa do litoral incluem aqueles fornecidos por recifes de conchas ou corais, vegetação de dunas e praias, manguezais, marismas, dentre outros. A perspectiva é que tais ecossistemas podem ser restaurados e refuncionalizados para atender diretamente os objetivos de proteção costeira.
Nos dias atuais, a decisão de qual obra deve ser adotada para o controle da erosão costeira deve ser objeto de uma avaliação detalhada, que permita um diagnóstico local preciso das causas do fenômeno, e que pontue sobretudo comparações entre as alternativas técnicas disponíveis, assim como o custo-benefício e o impacto na sustentabilidade. Melhores decisões são normalmente tomadas diante desse tipo de estudo que no Brasil chamamos de EVTEA – Estudo de Viabilidade Técnica Econômica e Ambiental.
Como observa as ações de governos locais, estadual e federal, além de órgãos ambientais nessa questão que envolve avanço do mar ou erosão costeira?
Legalmente, todas as praias oceânicas são bens públicos de uso comum do povo e fazem parte do patrimônio da União, e é obrigação legal também dos Estados e Municípios zelar por elas. Entendo que as principais ações a nível governamental devem ser as políticas públicas participativas. O governo federal criou as principais políticas de gerenciamento costeiro a partir da promulgação da Lei 7.661 de 1988, que é o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro. A mesma foi regulamentada pelo Decreto 5300/2004. É interessante perceber que somente no final de 2023 a questão da erosão costeira aparece explicitamente com a Lei 14.714 de 2023, que altera o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro para incluir o controle da erosão marítima e fluvial.
Outra visão importante aparece a partir da Lei 12.608 de 2012 que estabelece a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC) que determina e estabelece competências específicas para que a União, Estados, Distrito Federal e Municípios adotem medidas para reduzir os riscos de desastre, com a colaboração de entidades públicas, privadas e da sociedade em geral, incluindo a elaboração de planos de proteção e defesa civil, identificação de áreas de risco, monitoramento meteorológico e geológico, entre outras ações. A erosão costeira é uma tipologia de desastre natural do grupo geológico e é definida como o processo de desgaste (mecânico ou químico) que ocorre ao longo da linha da costa (rochosa ou praia) e se deve à ação das ondas, correntes marinhas e marés.
O Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro abre a possibilidade de que os estados e municípios avancem em suas políticas de gestão costeira. No entanto, ainda são poucos os estados e municipios que o fazem. O Estado do Rio de Janeiro não o tem, ficando a temática ancorada em ações do Instituto Estadual do Ambiente. Os municípios avançam lentamente nas suas políticas locais de gestão costeira. Na região, apenas Campos e Rio das Ostras têm planos municipais de Gerenciamento Costeiro, sem no entanto abordarem estratégias claras para a defesa do litoral.
De uma forma geral, e a nível local, as intervenções na orla marítima para conter os impactos da erosão costeira têm sido executadas por secretarias de obras públicas e, via de regra, as intervenções vão no caminho do dimensionamento de estruturas rígidas, em ações quase sempre emergenciais, e, geralmente, pouco ou não amparadas em conhecimento técnico-científico sobre o tema.
As pesquisas e relatórios provenientes das universidades têm contribuído de que forma para refletir e combater o problema no litoral fluminense?
Os esforços científicos sobre a erosão costeira estão difundidos em todos os 17 estados litorâneos brasileiros. Existe uma rede de pesquisadores de geólogos, geógrafos, oceanógrafos que se debruçam incessantemente sobre o tema em todo o litoral do país. A rede do PGGM – Programa de Geologia e Geofísica Marinha reúne pesquisadores dedicados ao tema. Dois grandes panoramas sobre a erosão no litoral brasileiro foram lançados, o primeiro no ano de 2006 e o segundo no ano de 2018. O ponto central dessas análises é a compreensão das principais causas dos problemas erosivos e os mesmos apontam a ação humana como principal detonadora do processo erosivo no litoral brasileiro.
No litoral fluminense, as principais pesquisas sobre o tema estão nas instituições UFF e UFRJ. Os pesquisadores acabam colaborando muitas vezes com pareceres e relatórios técnicos, infelizmente, e na maioria das vezes, para evitar impactos negativos de intervenções mal dimensionadas na orla marítima. Cabe destacar também o papel do Ministério Público Federal nas discussões e nas recomendações sobre as intervenções na orla marítima, uma vez que, como já dito, as praias são bens públicos da União e tal interesse difuso precisa e merece ser bem acompanhado.
Gostaria de destacar medidas de prevenção e combate que podem auxiliar nessa questão?
Gostaria de destacar que há atualmente no litoral brasileiro diversas frentes de intervenção frente ao processo de erosão costeira com medidas de recuperação ou preenchimento (engordamento) artificial de praias.
Os projetos de recuperação ou alimentação artificial de praias e a (re)construção de dunas artificiais prevêem a adição de materiais semelhantes aos perdidos. Os princípios desses sistemas são simples e consistem na dragagem, no transporte e na deposição das areias. No entanto, algumas etapas operacionais partindo do design do sistema e das distâncias do transporte podem ser complexas e onerosas, cabendo ponderação para definir o melhor cenário e desenho para um sistema, sobretudo em função da posição da fonte de extração de areias.
Um desentendimento muito comum sobre os projetos de alimentação artificial de praias e dunas é que eles são falhos, na medida em que são destruídos pelas ondas e precisam ser reconstruídos. Ocorre que esses projetos têm a finalidade de absorver a energia e a forma com que eles fazem isso é se movimentando. Desde que haja disponibilidade de recursos e fontes de materiais arenosos compatíveis, a continuidade (manutenção) é uma das ideias-chave nesses projetos, uma vez que, ao contrário das estruturas rígidas perpendiculares à costa (ex. espigões) que restringem a movimentação de areias, os materiais que são eventualmente erodidos serão livremente movimentados para outros segmentos do litoral.
No Brasil, o principal exemplo desse tipo de intervenção é antigo e pioneiro. Foi executado na praia de Copacabana, em 1969-1970, visando defender a orla urbanizada do ataque de ondas de tempestade e ampliar a praia recreativa. Neste caso, foram utilizados cerca de 3,5 milhões de m³ de areia, dragadas da zona submarina, para aumentar a largura média da praia de 55 para 140 metros.
Outro exemplo de destaque foi a intervenção na Praia Central de Balneário Camboriú em 2021, após quase 40 anos de discussões. A ideia desses projetos é sempre amenizar a erosão costeira enquanto devolve à população uma praia recreativa mais ampla. A obra teve custo inicial estimado em R$ 68 milhões, mas somam-se a isso todas as outras etapas preliminares (ex. estudos e licenças ambientais) e posteriores (ex. reurbanização da orla, manutenção e monitoramento) o que pode multiplicar o valor inicial por três ou quatro vezes.
Outros exemplos desse tipo de intervenção no Brasil já aconteceram em Balneário Piçarras, Praia dos Ingleses e Canasvieiras, todas em Santa Catarina; na Praia Central de Jaboatão dos Guararapes-PE; em Marataízes-ES; e mais recentemente em Meaípe, Guarapari-ES. Há ainda um projeto para engordar a Praia de Ponta Negra, em Natal (RN), dentre outros, sobretudo no litoral do Nordeste do país, que sofre de forma mais intensa o problema da erosão costeira. Existem outras intervenções no Brasil e no mundo que poderiam ser destacadas também.
As formas básicas de concepção desses projetos variam visando atender os objetivos ou se adaptar ao montante de recursos disponíveis ou às exigências ambientais. As formas variam desde uma pilha de areia (pile sand) posicionada na faixa de estirâncio à barlamar da área em que se pretende intervir, o reforçamento vertical ou horizontal de dunas frontais ou a construção artificial de bancos de areia na zona submarina. Nesses casos, gradualmente a ação de ondas, marés, ventos e deriva litorânea proporcionam o espalhamento e o ajuste morfológico do perfil e os resultados tendem a ser menos controlados e mais naturalizados. Projetos mais complexos visam recompor o perfil ativo, desde a duna frontal até a zona submarina, utilizando maquinário para a terraplanagem e anteparos emersos e/ou submersos para a criação e manutenção da forma desejada para o perfil.
Os impactos negativos dos projetos de recomposição/construção de praias e dunas sobre o meio físico são relativamente menores quando comparados às estruturas rígidas. Ocorrem quando são construídas dunas muito íngremes ou com areias incompatíveis. Dunas e praias íngremes tendem a colapsar rapidamente, podem impedir a locomoção da fauna terrestre e reduzir a acessibilidade dos usuários. Quanto às areias, se as mesmas forem menores que as nativas elas podem ser perdidas rapidamente pela ação de ventos e ondas. Se as areias forem muito maiores, podem agir refletindo a ação das ondas e formando escarpas elevadas, o que inviabiliza uma praia recreativa e acessível. A compatibilidade dos materiais a serem usados nos projetos de recuperação artificial do sistema praia-duna deve considerar os aspectos de tamanho, forma, cor e textura, e é vital para o sucesso da intervenção.
Entende-se que conceitualmente a efetividade dos projetos de recuperação artificial de praias esbarra nos custos e na capacidade de manutenção. Os custos tendem a subir na medida em que as fontes próximas de areias compatíveis se esgotem. No contexto da elevação do nível do mar, tais custos no médio e longo prazo se tornarão impeditivos. E, por fim, caso se mantenha o objetivo de proteger as edificações, a solução final acabará sendo uma obra rígida como um muro, culminando com o desaparecimento da praia.
Como observa o futuro das populações que vivem próximas ao mar e estão envolvidas diretamente com mudanças climáticas e erosão costeira?
Adaptação é a palavra-chave. No contexto das mudanças climáticas no litoral, adaptação refere-se às medidas e estratégias implementadas para enfrentar e se ajustar aos impactos das mudanças climáticas específicas para áreas costeiras. Neste contexto, isso inclui os efeitos do aumento do nível do mar, erosão costeira, inundação marinha e ‘ressacas’ mais intensas. As medidas de adaptação visam reduzir a vulnerabilidade das populações costeiras, aumentar a resiliência dos ecossistemas e garantir a sustentabilidade das atividades econômicas nessas regiões.
As populações que vivem próximas ao mar, de forma planejada ou forçada, precisam se adaptar e, idealmente, isso envolve uma ampla gama de ações, desde o planejamento e o zoneamento costeiro até a construção de infraestruturas resistentes às mudanças climáticas, a restauração de ecossistemas costeiros, o desenvolvimento de sistemas de alerta para eventos extremos e/ou o reassentamento de comunidades em áreas de risco mais alto.
Se medidas de adaptação não forem tomadas para lidar com a erosão costeira devido às mudanças climáticas, uma série de impactos que já ocorrem tendem a se intensificar, aqui cito alguns exemplos:
Trata-se de um fenômeno irreversível a questão do avanço do mar no Brasil e no mundo? O combate ao aquecimento global “resolveria” a questão?
É importante ficar claro que a erosão é um fenômeno natural de mudança na paisagem litorânea. As praias sempre erodiram e sempre vão erodir, assim como outros segmentos sofrem o efeito oposto que é a acreção. A erosão e a acreção atuam em todos os continentes onde há litoral arenoso. Ocorre que a erosão costeira pode ser criada artificialmente em áreas onde não ocorria antes, e pode ser intensificada em áreas onde já ocorre na medida em que a ação humana atua tornando o balanço sedimentar negativo.
O combate ao aquecimento global hoje está baseado na redução das emissões de GEEs que são os gases de efeito estufa (outro nome pra isso é descarbonização) e na promoção de ações que visem sequestrar (ou retirar) o CO2 da atmosfera. Essas medidas são importantes para reduzir a participação das ações humanas no aumento das temperaturas do planeta. No entanto, a variabilidade natural do clima também aponta um aquecimento há, ao menos, 18 mil anos, e o que já aqueceu, já aqueceu e o oceano absorve isso de forma muito lenta. Mesmo que se consiga reduzir drasticamente as emissões dos GEEs, os impactos do aquecimento do planeta vão continuar atuando por muitas décadas.
Em relação à erosão costeira, o que pode ser efetivamente feito são ações baseadas em ciência para o controle dos impactos negativos que, no nível local, devem ser tomadas caso a caso. As medidas de controle podem ir no caminho do enfrentamento (ex. execução de obras rígidas, projetos de recuperação artificial de praias); ou no caminho do não-enfrentamento (ex. medidas de adaptação, remoção de populações em áreas de risco, sistemas de alerta) ou mesmo ambas. O mais importante é que a sociedade entenda o problema e pressione as autoridades locais em medidas sérias de planejamento e gestão da orla marítima, no desenvolvimento de políticas públicas participativas, sustentáveis e baseadas em conhecimento técnico pertinente.
Comente algo que não tenha perguntado e considere indispensável citar para refletir este tema.
Gosto muito de um livro chamado “The Last Beach” dos professores e geólogos Orrin Pilkey e J. Andrew Cooper, que examinam o impacto das mudanças climáticas, especialmente a elevação do nível do mar, na costa e na vida marinha. Eles também abordam as ameaças à existência de praias naturais. Os autores discutem como o desenvolvimento costeiro, a urbanização e a engenharia costeira têm contribuído para a destruição e a erosão das praias ao longo do tempo. Ao fim, deixam uma mensagem final que eu gostaria de trazer aqui em tópicos:
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