

Duas faces de uma mesma moeda.
A pandemia do novo coronavírus expôs a divergência entre a necessidade de consumir bebida alcoólica como uma forma de escape da realidade, e um processo de construção individual para superar falhas e vícios. Foi assim que gestores do grupo de apoio Alcoólicos Anônimos (AA) concluíram um aumento expressivo pela procura dos serviços em todo o Brasil no período de um ano. Campos ficou dentro desta mesma realidade. E na maior cidade do interior do estado do Rio de Janeiro, jovens do sexo feminino lideram o ranking do público que passou a frequentar essas reuniões para se livrar do vício da bebida alcoólica, considerada doença pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
“Minha experiência mostra que o confinamento gerou ociosidade nas pessoas que passaram a conhecer o álcool ou a aumentar o consumo como uma forma de fuga. O que eles não sabem é que estão caminhando para o fundo do poço e, ao perceberem isso, acordam para a realidade e buscam ajuda. Isso cresceu assustadoramente”, informou o ex-dependente Osvaldo, de 70 anos, que atualmente coordena um grupo AA em Campos e prefere não revelar seu sobrenome para ter o anonimato preservado.


Há esperança
O tratamento é multidisciplinar, segundo a Organização Mundial de Saúde. Assim como todo vício, é necessário, primeiramente, o reconhecimento da doença e a iniciativa do dependente. Em segundo lugar, é necessário buscar apoio psiquiátrico, psicológico e atividades terapêuticas como os AAs que podem ajudar o paciente. Mas, há casos de manifestações clínicas mais graves, como cirrose, pancreatite, e até câncer. Isso porque, após a ingestão e digestão, o álcool entra na corrente sanguínea, provocando dependência e inflamações. Nestes casos, os tratamentos passam a ser ampliados e específicos.
Alcoólicos Anônimos (AA)
De acordo com Osvaldo, os AAs são considerados uma irmandade independente, sem vínculo com entidades públicas ou privadas que sobrevivem com colaborações voluntárias, sejam financeiras ou assistenciais. Para ele, as portas sempre abertas destas instituições facilitam o acesso do público interessado em se livrar do vício. “Na maioria dos casos, somos a primeira instituição que vem à cabeça dos usuários quando eles despertam para se livrar da dependência alcoólica. Mas a maioria nos procura por imposição da família ou do patrão. Nosso trabalho consiste em apoiar essas pessoas e também na troca de informação. Com o compartilhamento das experiências, o público se sente acolhido e encontra forças e identidade para continuar na batalha contra o vício”, relata o ex-dependente alcoólico que comemora a conquista há 22 anos.
Em Campos, atualmente, funcionam quatro salas do AA. Antes da pandemia, até o início de 2020, por exemplo, este número chegava a 23. Osvaldo explica que os grupos costumavam se reunir em igrejas e escolas, mas, com a pandemia, estas instituições fecharam as portas para evitar a propagação da doença e cumprir as exigências sanitárias impostas pelos governos. Porém, algumas reuniões ainda acontecem, respeitando o distanciamento social. Outras, acontecem de forma virtual. “Sou frequentador há 22 anos. Hoje continuo vindo também por necessidade, pois ficar afastado deste tipo de apoio é perigoso. Mas participo, ainda, por amor, gratidão e vontade de ajudar ao próximo. Para se ter uma ideia do quanto aumentou a busca pelo nosso trabalho, afirmo que nossos últimos encontros virtuais reuniram até 300 pessoas numa mesma sala de bate-papo”, afirmou, acrescentando que no Brasil não há uma estatística oficial sobre os atendimentos.
Osvaldo lembra que fora desta pandemia, outros picos de procuras aconteciam após o Carnaval e outros feriados prolongados. Em Campos, o participante mais antigo do AA frequenta o grupo há 60 anos.
No Brasil, há 92 escritórios administrativos de AA, sendo oito no Estado do Rio de Janeiro. Um deles está em Campos.
Relato pessoal
Se livrar de um vício, seja ele qual for, não é tarefa fácil. Osvaldo compartilha sua experiência e se revela um exemplo de persistência. Ao expor suas particularidades, faz questão de assumir suas fraquezas. “Tive mais facilidade para deixar de beber do que de fumar. Deixei de beber na primeira reunião de AA que participei. Já para abandonar o vício do cigarro, eu lutei por mais 10 anos. Parei na marra, fui obrigado, após sofrer um acidente, fraturar costelas e não ter mais condições físicas para fumar. Tive crises de abstinência de nicotina e fiz tratamento médico. Já a bebida chegou na minha vida aos 42 anos. Comecei bebendo cerveja em churrascos, festas e depois passei a tomar bebidas mais quentes. Como o alcoolismo é uma doença progressiva, cinco anos foram suficientes para eu perder casamento, empregos e, o pior, a moral e a dignidade. Após me livrar do vício, consegui me aposentar e vivo de forma saudável, viajando e curtindo momentos de lazer. A saúde, automaticamente, melhorou.
Recentemente fui a uma festa de família e resisti muito fácil às ofertas de bebidas, mas diabético teimoso que sou, não consegui passar longe da mesa de doces e chuviscos”, brinca.


Efeito anestésico
O psicólogo Gilberto Nunes avaliou que eventos adversos que geram desconforto, ansiedade ou medo nos seres humanos fazem com que eles busquem formas de aliviar esse estresse. “Uma das formas encontradas pelas pessoas é com substâncias que levam ao relaxamento ou efeito anestésico, como drogas ou substâncias que tenham ação relaxante no sistema nervoso. O álcool é um exemplo. É comum a busca desses métodos. Há pesquisas neste sentido, de que em períodos de guerra, soldados ingerem substâncias com estes efeitos quando estão fora da batalha para gerar conforto”.
Nunes acrescenta que a busca por mudança de hábito de vida e acréscimo de atividade física na rotina é uma forma saudável de aliviar tensões. “Essas práticas facilitam a produção e liberação de hormônios de bem-estar que geram recompensas físicas e mentais e não são danosas à saúde como o álcool, por exemplo. Vale destacar que durante a pandemia aumentou muito a procura por atividades físicas ao ar livre, como corrida, caminhadas e ciclismo”.