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Um rosto para a igualdade racial

Campista representa o movimento negro por várias partes do Brasil e levanta sua bandeira perante autoridades e comunidade

Campos
Por Redação
3 de junho de 2018 - 0h01

A ativista Lucimara Muniz em Brasília durante evento (Foto: Divulgação)

Combater o racismo e defender as comunidades quilombolas são algumas das atividades diárias de Lucimara Muniz. Atualmente, ela preside o Instituto de Desenvolvimento Afro Norte e Noroeste Fluminense (Idannf), e é uma das representantes mais empenhadas nas causas que envolvem as comunidades negras em Campos e no Estado do Rio de Janeiro. Lucimara tem participado de eventos relevantes em Brasília que discutem questões nacionais dos quilombolas. Ela faz parte da Coordenação Nacional de Comunidade Quilombola (Conaq), além de ser formada em Ciências Ambientais e Letras.

O desempenho de Lucimara Muniz tem chamado a atenção da sociedade. Recentemente, a ativista foi capa da revista dominical “Ela” do jornal “O Globo”, juntamente com outras três militantes em um ensaio de moda que lembrou os 130 anos da Lei Áurea. A família de Lucimara Muniz é de origem do antigo quilombo Cidade de Palha que, mais tarde, tornou-se o bairro de Custodópolis, em Guarus. Ela conta que sua militância pela causa negra é herança dos ensinamentos que recebeu da mãe e do avô. Para Lucimara, é preciso transformar a sociedade sem perder a essência e a identidade dos ancestrais. “A vida exige responsabilidades”, afirma. Conheça um pouco mais sobre a ativista nesta entrevista especial.

Você está em Brasília na 5ª Conferência Nacional sobre a igualdade racial.

Estou na Conferência Nacional de Promoção de igualdade Racial. Como delegada eleita na Plená ria Nacional Quilombola, onde estamos discutindo a política da igualdade racial, traçando novos rumos, missão, contribuindo para uma construção nacional de enfrentamento ao racismo ou qualquer tipo de discriminação e violência na questão étnico racial.

Como mulher negra de Campos dos Goytacazes, última cidade do país a abolir a escravatura, você se sente orgulhosa?

Sinto-me orgulhosa de ser negra, quilombola e de lutar por uma história de ancestralidade, que acredito. A cidade de Campos tem um marco histórico escravocrata. Na região, 60% da população era escrava. Os negros eram negociados no RJ e enviados nas embarcações para a Região Norte Fluminense. O maior engenho chegou a possuir 1.400 escravos. A produção açucareira teve um crescimento contínuo e progressivo, que motivou também um comércio crescente de escravos. Antes da abolição, o município tinha 35.688 escravos sobre um total de população livre de 56.000 habitantes. Este pequeno relato faz nos entender que Campos dos Goytacazes é uma planície negra, de peculiaridades negras e a política e suas transversalidades devem ter como consonância e relevância a questão histórica que nos envolve. E tem o maior número de Comunidades Quilombolas.

E como os trabalhos estão sendo conduzidos por aí?

Os trabalhos estão sendo discutidos em eixos temáticos com 4 subtemas: Reconhecimento, Garantia de Justiça, Desenvolvimento, Discriminação Múltipla ou Agravada. A IV Conapir tem como tema: O Brasil na década dos Afrodescendentes: Reconhecimento, Justiça, Desenvolvimento e Igualdade de Direitos. Este tema aconteceu em Durban, pela ONU. Estão em torno de 800 delegados, convidados e observadores do Brasil todo para discutir a política de Igualdade e de metas para o povo negro.

Como você vê o quadro do negro, hoje, no Brasil, principalmente a questão da mulher? Procuro tecer algumas reflexões sobre o papel do negro durante o período pré e pós-abolição no Brasil. Tenho que levar em primeiro ponto em consideração que a desigualdade social neste país tem cunho histórico, tem cor e sexo, e isto é fato, desde 13 de maio, quando a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, e no dia 14 de maio estes negros foram jogados na sociedade e não inseridos nela. E este fato vem traçando até os dias atuais, onde a desigualdade social está nas Comunidades Quilombolas, nas periferias e diferentes núcleos de pobreza, onde evidenciamos este fato de desigualdade. Onde traçamos políticas públicas, desenhamos a igualdade mas temos sempre o reflexo do racismo imposto. Persiste uma ausência política que nada mais faz do que criar programas e projetos inclusivos que estão na contramão de uma realidade negada e silenciada diariamente. Os dirigentes do nosso país, antes de se preocuparem com fórmulas mágicas, incapazes de modificar a realidade dos negros no que se refere a sua ascensão profissional e acadêmica, precisam multiplicar esforços em busca de melhorias na educação básica e infraestrutura social a que estão condicionados. A maioria dos negros em nosso país é obrigada a trabalhar muito cedo para complementar a renda familiar. O Mapa da Violência mostra que enquanto o homicídio de mulheres negras experimentou um crescimento de 54,2% entre 2003 e 2013, no mesmo período, o homicídio de mulheres brancas caiu 9,8%. Também precisamos reconhecer que sem as mulheres negras e seu pensar ativo não teremos o pleno exercício de nossos direitos. Ser mulher negra é enfrentar a dor, enfrentar a luta cotidiana, tentar sobreviver e seguir mais adiante, pois cada dia somos vítimas de violência e racismo.

Quanto tempo você acha que ainda precisaremos para acabar com esse absurdo?

Não vejo como tempo, vejo como meta imediatista, planejada de ações para este enfrentamento diante dos fatos de preconceito e racismo que nos tange a cada dia. Segundo dados da CONAQ, temos mais de 8 mulheres que foram assassinadas pela luta por seu território. A cada dia mais a perda de direitos da política pública nos leva a traçar estratégias para pertencimento de luta e de conquista.

Essa conferência vai tirar um documento forte sobre o problema? E vai encaminhar para quem?

Todo documento discutido na Conferência, será inserido identificado e aprovado, 120 na plenária, que será posteriormente encaminhado para cada Ministério com suas competências para que sejam implementadas as políticas públicas.

 Você saiu recentemente, no domingo, no Dia das Mães ( 13 de Maio), no caderno ELA, de O Globo. Considerou a publicação importante?

Foi um momento de dizer naquele momento que somos mulheres negras, quilombolas e de luta territorial, empoderada e também o fator de dar visibilidade ao protagonismo da mulher negra e do Quilombo. E estar ali, como mulher negra quilombola de Campos dos Goytacazes, retratou que a construção da história ainda emana de uma herança cultural. E pensar que 13 de Maio não comemoramos, enfim, o povo negro não comemora, faz uma reflexão deste dia. Após o fim da escravidão, de acordo com o sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995), em sua obra “A integração do negro na sociedade de classes”, de 1964, as classes dominantes não contribuíram para a inserção dos ex-escravos no novo formato de trabalho.

Os historiadores afirmam que o primeiro presidente da República negro foi o campista Nilo Peçanha. Tem uma opinião sobre isso?

Nascido em Campos em outubro de 1867, Nilo Peçanha é tido como o primeiro e único afrodescendente a ter assumido a presidência do Brasil. Peçanha teve uma infância humilde, mas formou- -se em Direito. Foi eleito deputado da Assembleia Nacional Constituinte e teve dois mandatos como Deputado Estadual pelo Rio de Janeiro, entre 1891 e 1903. Paras biógrafos do político, a prática de Peçanha inaugurou um novo modo de fazer política, que rompia com os velhos modos baseados nas oligarquias rurais estaduais. Pesquisas mais recentes, no entanto, chamam a atenção para compromissos do político com as classes dominantes e o caráter limitado das reformas pretendidas pela Reação Republicana. Isso nos leva a considerar o berço político, histórico que tem Campos dos Goytacazes e que eleva ao pensamento de uma construção de formar opiniões a todo momento, mas esquece, às vezes, a formação histórica que faz parte de cada um de nós.

Qual é a situação da mulher negra hoje em Campos?

“A ONU solicitou que os países criassem os dias nacionais, bem como aos estados e municípios, os dias estadual e municipal, respectivamente, para que houvesse um debate amplo sobre o tema. Campos foi o terceiro município do Brasil a criar uma lei municipal em 2004. Porém, hoje, a mulher negra campista vive à margem da discriminação e desigualdade em diferentes meios e espaços. E com essas mulheres, da raça negra, a discriminação é em dobro. Assim, o preconceito está presente em vários aspectos do cotidiano, inclusive na saúde, direitos sociais, econômicos e educacionais. As desigualdades observadas são persistentes em todas as áreas ao longo dos anos e, apesar do esforço do atual governo em promover a inclusão, as mudanças ainda são muito lentas. “O Brasil é racista e o preconceito é velado.” Isto está nítido no seu estereótipo de cabelo, maquiagem, formas de expressar, roupas que incomodam a sociedade racista, que ainda é velado.

Seria sua intenção trazer esse debate, com detalhes desta conferência para as escolas e academia de Campos?

Com certeza, todas as propostas discutidas serão de suma importância de discussão principalmente em Campos dos Goytacazes, que possui este berço histórico étnico. Onde temos nestes espaços educativos negros que precisam saber que há uma política nacional, que é uma construção coletiva que envolve todo estado brasileiro, que os movimentos sociais de diferentes segmentos deste país são protagonistas desta construção, que vai ser base num caderno de proposta de política de igualdade Racial. Temos que estar sempre nestes espaços sermos múltiplos de informações e comunicação para assim construir um país mais igualitário e de entendimento dos papeis.

 A partir desta experiência você acha que vai se tornar uma ativista ainda mais fervorosa pela causa?

Ativismo é essência, não se cria, não se molda, ela emana, nos reage, ele te identifica. E ser ativista é ter a compreensão e a responsabilidade no que você acredita e luta. O ativismo é uma militância que tem ação continuada com vistas a uma mudança social ou política, privilegiando a ação direta e de crer nas transformações e implantações de fato da política pública. E vou mais além, o ativista tem como meta o crer da construção coletiva, da verdade e sua transformação.

Você já foi vítima de racismo?

Já. Aconteceu um caso que a pessoa falou do meu cabelo de tranças, tinha uns 16 anos e, na época, não sabia como me defender. A minha defesa era chorar e querer que meu cabelo ficasse liso. Quis me entender como negra e saber cada vez mais sobre o meu histórico familiar para me auto afirmar. Um processo longo de identificação que passei. Outro caso foi atual, onde me disseram assim: “Você fala bem, sendo negra…” respirei e respondi: “E você tem uma opinião preconceituosa, sendo branca.” O que a cor da pele te difere de mim? Minhas afirmações, meu jeito, são retratos dos meus ancestrais. E, hoje, direito se impõe e conquista. Mas tudo isto, nos leva à reflexão de que sociedade ainda estamos. Estes jovens, crianças negras que devem ter informações, que descende de um povo lindo, de reis e rainhas que foram escravizados neste país. E isto é história que ninguém nos tira e apaga, pois ela está viva e cada dia mais viva. Quando me vê, vê o outro negro, vê a outra negra neste espaço chamado Brasil. E viva a diferença, pois ela me diz a cada dia que faço parte da construção desta história, que faz parte de mim.

Entrevista concedida ao jornalista Aloysio Balbi