Atravessar fronteiras físicas e, principalmente, simbólicas. Negociar uma nova cultura. Enfrentar o desconhecido. Traduzir-se. Ressignificar-se. Esses são os desafios centrais de quem sai de seus lugares de origem e se aventura em terras estrangeiras. Ainda que o destino deles seja o Brasil, nação caracterizada pela cordialidade, a saudade de casa é constante e, portanto, viver longe da pátria é um ato de coragem. Mesmo diante desses obstáculos, são muitos os corajosos dispostos a encará-los, seja em busca de oportunidades, de refúgio ou de histórias para contar. Na edição 89 do Jornal Terceira Via, por exemplo, noticiamos a recente tendência dos campistas de irem morar em Portugal. Mas talvez os nativos daqui não saibam que é expressivo o número de estrangeiros que escolheram Campos como morada.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), vivem hoje no município aproximadamente 500 pessoas das mais diversas nacionalidades, mas estudiosos que se dedicam à questão da imigração acreditam que esse quantitativo pode ser ainda maior. Parte significativa desses estrangeiros seria oriunda do continente asiático (da China, principalmente), e do Oriente Médio (do Líbano e da Síria), mas há representantes das mais diversas nacionalidades espalhados pela cidade.
Relatos de Experiência
Wilder é colombiano, mas mora em Campos há seis anos e meio. Ariceli é argentina e está em terras goytacazes desde fevereiro de 2018. Os dois são vizinhos e atuam como pesquisadores da área de Ciência Animal na Uenf. Procurados pela equipe de reportagem do Jornal Terceira Via, tanto Wilder quanto Ariceli contaram um pouco sobre a experiência de viver em Campos e foram unânimes ao afirmar que a principal dificuldade encontrada na cidade é a insegurança.
Tanto Ariceli quanto Wilder viram na Uenf uma oportunidade de ampliar os estudos, uma vez que, em seus países de origem, as chances são menores e, quando ocorrem, custam caro. Ary, como gosta de ser chamada, soube da vaga por intermédio de um professor na Argentina. Ela passou por todos os trâmites descritos no edital e conquistou um espaço nas salas de aula da Uenf. Quanto à receptividade, Ary disse que os campistas foram simpáticos e hospitaleiros, mas a cidade, em si, não a agradou tanto assim. “Eu gosto muito do Brasil, porque é um país muito bonito. Mas Campos… Eu sinto falta de ter coisas para conhecer, de ir à praia… E também não me sinto segura. Evito sair à noite, por exemplo, tenho medo que alguém me roube. Mas as pessoas que conheci, são ótimas. Fiz muitos amigos”, afirmou.
Wilder, por sua vez, tem uma filha de 5 anos que é campista e, por isso, disse que a cidade já faz parte da sua história e já criou raízes nesse lugar. Ele conta que, quando chegou, não houve um choque muito grande. Isso porque o Brasil, assim como a Colômbia, é um país tropical e de gente aberta e simpática. “O Brasil e a Colômbia são semelhantes em muitos aspectos, não só em relação ao clima e à biodiversidade, mas também no trato com as pessoas, coisas que fizeram com que eu me adaptasse muito bem ao país”, disse.
A escolha por Campos não partiu dele. Na realidade, foi Campos que o escolheu. “A Uenf foi a universidade que abriu as portas para que eu realizasse o sonho de cursar o mestrado e o doutorado”. Ele conta que os campistas ainda não estavam acostumados com estrangeiros quando chegou aqui, mas, com o passar dos anos, o cenário mudou. “Hoje há pessoas de todos os cantos do mundo aqui, embora eu acredite que ainda é escassa a troca de cultura com os povos estrangeiros em Campos. A cidade está crescendo, mas ainda há um vasto caminho a ser trilhado nesse sentido. Até porque, a cultura estrangeira é rica e nós temos muito o que oferecer”, declarou.
Quanto às dificuldades encontradas aqui, Wilder afirma que as principais delas não estão relacionadas ao fato de ele ser estrangeiro. “Tem a ver com a insegurança e isso atinge estrangeiros e não estrangeiros. Em relação ao trânsito, essa é também uma reclamação generalizada. O desrespeito às leis de trânsito principalmente. Há grandes dificuldades para se locomover, independente do meio de transporte, e isso é complicado porque você não sabe em que momento alguém vai desrespeitar as normas e causar um acidente. Então você tem que ter a atenção redobrada nesse sentido”, frisou o colombiano.
Mas, entre todos os problemas, o maior deles é a saudade de casa. “Todas as outras coisas, você acaba se acostumando, mas a saudade sempre aperta. Você consegue fazer os seus pratos típicos, você consegue vestir as roupas da sua cultura em determinadas situações que você considera especiais, consegue acompanhar outros aspectos da vida por meio das redes sociais… Mas a maior dificuldade é não ter a família por perto”, disse ele que, quando veio, trouxe a esposa, também colombiana, para acalentar o coração.
Ary, de 29 anos, também sente falta de casa. Ela deixou os pais, o namorado e seus dois gatos de estimação na Argentina e, agora, durante a Copa do Mundo, a saudade aperta ainda mais. “Tenho saudades da comida, dos meus costumes, da minha antiga rotina… Tudo é diferente. Ficar aqui sozinha, morar sozinha, não é fácil. Mas é válido”.
Questionados se pretendem voltar às suas terras natais, Wilder e Ary responderam de forma semelhante. Os dois estão focados em esgotar todas as possibilidades de formação acadêmica por aqui. “Pretendo voltar ao meu país um dia, mas, no momento, quero continuar minha formação, o que acredito que irá demandar uns dois anos no mínimo. Eu não veria problemas em ficar em Campos, mas se a cidade não me oferecer uma fonte de renda adequada para o sustento da minha família, eu volto a minha terra”, afirmou Wilder.
Sobre a experiência de conhecer uma nova cultura e se inserir em um meio social desconhecido, tanto Wilder quanto Ary reconhecem os benefícios dessa aventura. “Sair da Colômbia para vir estudar em Campos me acrescentou muito, não só no campo profissional, mas também no pessoal. Conheci outra cultura, outros costumes e abri minha cabeça para o mundo. Eu recomendo a qualquer pessoa essa experiência. A princípio, enfrentamos situações constrangedoras que fazem parte dessa vivência, desse aprendizado, principalmente em relação à língua. Mas, com o tempo, essas circunstâncias viram comédia. Hoje, posso dizer que estou aberto. Se eu tiver a oportunidade de ir para outro país, com certeza irei aproveitá-la”, concluiu.
Entre a tradição e a tradução
Graduado em Relações Internacionais e Teologia, mestre e doutorando em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), João Boechat é brasileiro e decidiu estudar o fluxo imigratório em Campos em uma de suas pesquisas acadêmicas. A ideia surgiu da curiosidade em entender como esses povos buscam alternativas de se manterem conectados às suas raízes, aos seus laços de identidade, ainda que, materialmente, estejam a milhares de quilômetros de distância.
“Quando o estrangeiro sai da sua terra, o laço físico é rompido e, por isso, ele precisa encontrar formas de se reconectar às suas origens e à sua identidade formada durante toda a vida. Isso acontece muito pela língua, pelos hábitos alimentares, pelas produções culturais diversas, como festas típicas e artesanato, e também pela religião. Eles mantêm vivas essas expressões e, assim, se reconhecem diante do mundo”, explicou Boechat.
Entre os pontos verificados na pesquisa está, por exemplo, a integração social. Os estrangeiros teriam certa dificuldade de se inserirem efetivamente em círculos sociais, ainda que, em tese, sejam bem recebidos pelo povo daqui. O professor explica que o brasileiro de modo geral é hospitaleiro, mas dificilmente trata os estrangeiros como parte constituinte de sua sociedade. “O imigrante é sempre visto como alguém que veio de fora”, aponta.
Mais um dado curioso observado na pesquisa é a tendência de receber de modo mais caloroso àqueles estrangeiros oriundos do continente europeu ou dos Estados Unidos da América. “Mas esse é um fato nacional. Não ocorre somente em Campos”, declarou o professor, que acrescenta: “Em geral, nosso município é visto pelos de fora como um lugar em que eles têm a liberdade de manter os hábitos culturais que eram realizados em suas terras natais”.
A questão econômica
Como dito, essas tradições estrangeiras refletem expressivamente na culinária; tanto que, uma das principais formas de atuação desses imigrantes na economia se dá por meio da abertura de restaurantes e lanchonetes que comercializam comidas típicas. Para João Boechat, quando a inserção no mercado de trabalho ocorre por meio do empreendedorismo, a aceitação por parte dos nativos também tende a ser mais fácil, uma vez que a competitividade capitalista é indireta. Tanto que, em Campos, são muitos os chineses e sírios que dedicam suas atividades econômicas a estabelecimentos comerciais do ramo alimentício.
É o caso dos irmãos Amer e Tamer Alsulaiman. Há três anos e meio eles saíram de Damasco, na Síria, e vieram tentar a vida em Campos. Deu certo. Com formação em culinária árabe, eles abriram uma lanchonete na região da Pelinca e conseguiram se estabelecer financeiramente na cidade. A escolha pela cidade se deu porque eles conheciam outros sírios que moravam aqui há mais tempo e que também atuam no comércio.
Questionado sobre as impressões que teve de Campos, Amer afirma que a considera uma cidade “boa”, mas que não é tão fácil fazer amigos. O principal desafio, para ele, é a língua. Com o sotaque bastante carregado, o sírio precisa contar com a boa vontade dos campistas. “Às vezes não entendem o que eu digo, mas eles se esforçam e isso ajuda muito. Hoje já tenho amigos aqui, mas no começo foi bem complicado”, contou.
Estrangeiros na Universidade campista
Outra pesquisadora que se dedicou à questão imigratória/migratória em Campos é Ileana Celeste Fernández Franzoso. Em sua dissertação do mestrado em Cognição e Linguagem, a argentina naturalizada brasileira realizou um levantamento quantitativo e qualitativo das experiências dos alunos e professores estrangeiros da pós-graduação da Uenf. Até 2016, 129 estudantes de fora passaram pela instituição oriundos de 30 nacionalidades diversas como África do Sul, Bélgica, Bolívia, Cuba, Colômbia, Espanha, Holanda, Peru, Rússia, Índia, México, etc. Hoje, há, em média, 45 professores e 30 alunos estrangeiros na Uenf, entre eles, Ary e Wilder.
A pesquisa, constituída de três pilares fundamentais, teve como propósito apresentar as vivências e percepções desses alunos e professores diante dos deslocamentos físico e simbólico, que envolvem uma série de processos sociais e culturais. O estudo também é voltado à internacionalização da universidade, que diz respeito à abertura de vagas nos cursos para alunos estrangeiros e à adaptação desses às políticas acadêmicas locais, e ainda à questão da linguagem.
“Vale lembrar que a Uenf já nasceu com esse tino da internacionalização. Darcy Ribeiro a idealizou para ser a universidade do terceiro milênio e, em seu planejamento, destacou a vinda de cientistas estrangeiros. Em sua época de ouro, a Uenf chegou a contar com mais de 100 professores vindos de outras nacionalidades, principalmente da Rússia, fazendo com que essa instituição se tornasse conhecida não só no Brasil, mas também em uma escala internacional”, explica Ileana. Na pesquisa, ela também aponta como se dão os processos de inserção de estrangeiros nos cursos de pós-graduação; quais são os trâmites e dificuldades e ainda sugere alternativas para tornar esse processo mais democrático, diante da “necessidade de transpor a barreira linguística para o desenvolvimento da ciência no Brasil”.
Por meio dos questionários aplicados, apreendeu-se que a maior parte dos entrevistados veio a Campos para obter alguma qualificação profissional, mas houve também quem viesse por questões afetivas/pessoais, cosmopolitas ou forçadas, como é o caso dos refugiados. Os entrevistados também afirmaram que a principal dificuldade de viver fora da pátria é a saudade de familiares e demais entes queridos, seguida do custo de vida, da revalidação do diploma universitário e da adaptação à nova cultura e à língua.
Com o estudo, a pesquisadora concluiu que o fenômeno migratório por questões de estudo é também complexo e dinâmico, como todo e qualquer rompimento e reconexão físico-cultural.