Mariana Lontra Costa – Presidente da OAB/Campos – Na sala de estar, entre um dever de casa e outro, a foto “fofa” do primeiro dente caiu no feed. Em segundos, curtidas e comentários se acumulam. O gesto parece inofensivo, até que, somada a tantas outras postagens, a vida daquela criança passa a existir permanentemente em bancos de dados. Na era digital, o direito à privacidade deixou de ser um debate abstrato e ganhou nome e rosto. O fenômeno tem apelido: sharenting — quando pais ou responsáveis compartilham, de forma recorrente, imagens, vídeos e informações dos filhos nas redes.
O que começa como uma vitrine de afetos pode se transformar em problema jurídico e psicológico de longo prazo e os tribunais, no Brasil e no exterior, já começam a reagir.
No Brasil, o assunto ganhou holofotes com o caso do canal “Bel para Meninas” em 2020. A discussão ultrapassou o limite do “bom senso”: quando o conteúdo coloca a criança em situação constrangedora ou a usa como instrumento de entretenimento, a legislação se impõe.
Comum observar ainda tal exposição em situações onde os pais estão divorciados e expõem os filhos com seus novos relacionamentos simplesmente ignorando a existência do outro genitor, em especial, usando a criança para atingir o outro.
A moldura legal brasileira é clara. O ECA assegura os direitos à imagem, à dignidade e ao respeito; o Código Civil protege a personalidade e a vida privada; a LGPD, sublinha que dados de crianças demandam tratamento específico, guiado pelo melhor interesse do menor. Em termos práticos, isso significa que a autorização dos pais não é um salvo-conduto: se o conteúdo viola a dignidade, expõe a intimidade, favorece bullying ou coloca a criança em risco, pode ser considerado ilícito. Fora do Brasil, a régua tem apertado. A França, por exemplo, aprovou uma lei específica para “crianças influenciadoras”. Osharenting deixou de ser apenas um tema digital para se tornar questão de direito fundamental.
A ciência do desenvolvimento infantil também bate na mesma tecla: a exposição sistemática interfere na construção da autonomia, na percepção de fronteiras entre o público e o privado e pode afetar a autoestima. Pesquisas internacionais vêm apontando que a maioria das crianças ganha pegada digital antes mesmo de completar dois anos de idade.
Nada disso significa que toda foto do álbum está proibida. O ponto é o “como” e o “quanto”. Se a era digital trouxe novos modos de registrar afetos, ela também exige novos cuidados. O direito à privacidade, aqui, é indissociável do direito ao futuro e ao direito de decidir quem ela quer ser perante os outros.
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