A médica anestesista Mariana Junqueira integra as equipes do Hospital Copa Star e Clínica São Vicente, no Rio de Janeiro. Natural de Paraíba do Sul, interior fluminense, ela cursou Medicina na capital e fez pós-graduação em Washington, Estados Unidos, onde viveu por três anos. De volta ao Brasil, ela tem se dedicado a pesquisas e ao tratamento da dor, já que se tornou uma importante referência nessa área. Recentemente, Mariana Junqueira e alguns integrantes de sua equipe estiveram em Campos dos Goytacazes para conhecer a estrutura do Grupo IMNE.
Os profissionais do Rio percorreram as diversas empresas de saúde que prestam atendimento na cidade e região. Ela disse que ficou impressionada com o parque tecnológico do IMNE, e com as atividades multidisciplinares desempenhadas.Ela aborda sobre Medicina da Dor e a necessidade de trocas de conhecimentos entre as instituições de saúde dos grandes centros e do interior brasileiro.
O que a motivou a se especializar no tratamento da dor?
A formação em anestesiologia foi o ponto de partida. A dor, para muitos colegas cirurgiões e até mesmo anestesistas, era vista quase como um efeito colateral natural do tratamento. Se houve uma cirurgia, é esperado que doa. Se o paciente está com câncer, a dor parece inevitável. Essa naturalização do sofrimento sempre me incomodou.
O exemplo do médico John Bonica, considerado um dos fundadores da Medicina da Dor após a Segunda Guerra Mundial, foi marcante. Ele costumava dizer que, em compêndios com mais de duas mil páginas sobre Medicina Interna, a palavra “dor” aparecia em apenas 14 delas. A realidade vem mudando, mas de forma lenta. Com a ampliação da área de atuação da Medicina da Dor, esse campo ganhou mais visibilidade, embora a dor ainda seja “subtratada”.
No Brasil, existe uma preocupação legítima com o uso inadequado de opioides, mas também uma resistência generalizada ao uso dessas medicações, mesmo em pacientes oncológicos, por medo de dependência ou punição. Isso contribui para o subtratamento. O médico precisa vencer a ‘ópiofobia’ quando ela impede o alívio do sofrimento real.
A senhora é uma referência no manejo da dor. Como a medicina atual compreende a dor crônica e quais os maiores desafios nesse campo?
É um grande desafio. A dor crônica, hoje, no mundo, tem uma prevalência de 30%, mostrando como é difícil o tratamento dessa condição. Não é um sintoma: a dor crônica, a gente não considera mais como um sintoma, a gente considera que é uma doença, porque já alterou algumas áreas do sistema nervoso central, especialmente sobre a percepção de dor, sobre o limiar da dor — o que a gente chama de sensibilização central. Isso atrapalha o sono, o prazer de viver, a qualidade de vida. O paciente se torna mais irritado, mais ansioso, mais deprimido. Então, não é uma síndrome com apenas um sintoma, não é só a dor. E não adianta, também, na dor crônica, perguntar sempre para o paciente sobre a intensidade daquela dor, porque isso, pra ele, não tem muito sentido. A gente tem que entender se ele está conseguindo melhorar a qualidade de vida, se está dormindo melhor, por exemplo.
Quais são hoje as abordagens mais eficazes para o controle da dor em pacientes com câncer e em relação a outras doenças?
No tratamento da dor do câncer, nós temos alguns medicamentos que ajudam no controle da dor. Normalmente, a gente precisa usar mais de um medicamento para esse controle. Muitas vezes, o paciente está usando corticoide, analgésicos comuns como dipirona e paracetamol, ou anti-inflamatório. Ele pode estar usando um opioide, que é um remédio derivado da morfina, um pouco mais forte. Mas existem outros tratamentos que a gente utiliza, que não são apenas os farmacológicos, como os preconizados pela escada analgésica da OMS — a Organização Mundial da Saúde. Podemos realizar procedimentos minimamente invasivos: infiltrações de nervos, bloqueios ou ablações de determinados nervos, chamadas de neurólises, na área do tumor ou na região onde o paciente sente dor. Isso pode proporcionar um controle mais adequado com uma quantidade menor de remédios, já que os medicamentos causam muitos efeitos colaterais.
Como o tratamento da dor pode impactar diretamente a qualidade de vida dos pacientes em geral?
Existem processos de neuromodulação em que podemos implantar uma bomba — uma bomba de fármaco, de morfina com anestésico — que é colocada dentro da coluna do paciente. Instalamos essa bombinha ligada a um cateter intratecal, ou seja, dentro da coluna, e ela vai liberando morfina e anestésico diretamente, como se fosse uma espécie de raquianestesia, aquela feita para o parto. A diferença é que se utiliza uma dose muito menor do que a usada em cirurgias, e essa dosagem já é suficiente para fornecer alívio da dor, ou analgesia, sem que a pessoa perca força muscular. A qualidade de vida é um dos pilares que utilizamos para medir o sucesso no tratamento da dor crônica. Muitas vezes, não conseguiremos eliminar a dor em 100%, mas o mais importante é reduzir os efeitos colaterais e alcançar um bom controle da dor para que o paciente mantenha sua qualidade de vida.
A senhora percebe uma evolução na forma como a dor é tratada nas diferentes fases da vida — da infância à velhice?
Em relação à idade, as crianças ainda não verbais apresentam uma dificuldade muito grande — na verdade, nós é que temos essa dificuldade. Toda a equipe multidisciplinar enfrenta o desafio de entender se se trata de dor ou de outro tipo de desconforto, como fome ou sede. Por isso, a avaliação precisa ser feita com muito critério, sempre considerando o olhar atento do cuidador sobre aquela criança. Nos adultos e adultos jovens, o desafio é medicar sem comprometer a atividade diária. É sempre uma grande preocupação garantir que a pessoa permaneça ativa, convivendo com a família e com o meio social. Os tipos de medicamentos usados são semelhantes entre as faixas etárias, mas com os idosos o cuidado deve ser redobrado.
Sobre inteligência artificial no tratamento da dor, como a IA pode transformar a rotina de quem trata pacientes com dor crônica?
Nos últimos anos, surgiram muitas publicações sobre o uso da inteligência artificial (IA) no controle de doenças crônicas, incluindo a dor. Desde 2023, temos visto avanços significativos, especialmente no controle da dor oncológica e na pesquisa sobre dor em geral. A IA pode, por exemplo, ajudar a identificar pacientes com maior risco de desenvolver dor pós-operatória ou de abuso de analgésicos e opioides. Com isso, conseguimos estruturar dados de forma mais rápida, mesmo a partir de registros em prontuários médicos que não seguem uma linguagem padronizada. A IA coleta essas informações e permite uma análise mais eficiente do histórico do paciente, ajudando a prever riscos e a planejar intervenções mais seguras. Na clínica da dor, coordeno uma equipe formada por oito médicos e uma enfermeira. Atuamos como equipe de referência tanto na Clínica São Vicente quanto no Hospital Copa Star.
Quais são as principais ações na formação médica em relação ao tratamento da dor?
Esse é um ponto que sempre me incomodou. Muitas vezes, o foco está na cirurgia bem-sucedida ou na eficácia do tratamento do câncer, mas o sofrimento causado pela dor é negligenciado. A dor prejudica a qualidade de vida, mesmo quando o quadro clínico parece controlado. É fundamental oferecer ao paciente condições para viver com mais conforto. Nem sempre é possível eliminar completamente a dor, mas o objetivo deve ser aliviá-la a ponto de permitir que o paciente tenha prazer na vida. O alívio da dor precisa ser encarado como parte essencial do cuidado integral.
O que chamou à atenção na visita ao Hospital Beda e às unidades do Grupo IMNE?
Fiquei muito surpresa e positivamente impressionada com o Parque Tecnológico e com a adesão das equipes ao uso da tecnologia. A integração dos sistemas nas diferentes unidades – seja na Nutrimed, ou no próprio Beda. Não é simples alcançar esse nível de integração, especialmente em instituições com grande campo clínico, e o que vi foi um esforço bem-sucedido de incorporação tecnológica. Espero que, em um futuro próximo, a medicina de excelência seja uma realidade mais presente fora dos grandes centros.
Como experiências como essa podem estimular a troca entre médicos de diferentes regiões do país?
A troca é fundamental. Essa minha visita a Campos me mostrou como é possível encontrar uma medicina de excelente qualidade fora dos grandes centros. Muitos médicos que atuam em cidades maiores ainda demonstram certa arrogância, acreditando que não há o que aprender com o interior. Mas a verdade é que existem profissionais e serviços de altíssimo nível espalhados por todo o Brasil. Eu mesma nasci em uma cidade do interior que está tentando avançar na área da saúde. A realidade ainda é dura para grande parte da população, que precisa buscar tratamento nos grandes centros. Mas há uma evolução em curso, e a troca – tanto nacional quanto internacional – é essencial para esse processo. Temos muito a aprender com médicos europeus, norte-americanos e, hoje, também com os asiáticos.
Que mensagem deixaria para profissionais que atuam em áreas como a Medicina da Dor?
A principal orientação é: compaixão. A escuta ativa e o cuidado humanizado devem ser pilares para quem se dedica ao tratamento da dor. Muitas vezes, o paciente deseja ficar totalmente sem dor, o que pode não ser viável. O profissional precisa ser transparente sobre as metas possíveis do tratamento, sem prometer milagres. Os procedimentos minimamente invasivos podem ser muito eficazes, mas não são uma solução universal. A dor envolve sofrimento físico, emocional e até espiritual. Tratar apenas os sintomas não basta. É preciso tempo, atenção e respeito pelo que o outro sente. Na minha opinião, quanto mais arrogante é um médico ou um serviço, mais difícil é o aprendizado. Porque sempre há algo a aprender. Sempre há alguém fazendo melhor. E a humildade abre caminhos que o orgulho fecha.