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Cambahyba perto do tombamento

Projeto foi aprovado em 1ª discussão na Alerj em busca de garantir preservação histórica

Especial J3
Por Monique Vasconcelos
3 de novembro de 2024 - 0h01
Ruínas|Usina Cambahyba foi fechada, mas, até hoje tem moradores que guardam boas memórias do local (Fotos: Josh)

Espaço histórico em Campos dos Goytacazes, local de destaque na era de ouro do ciclo da cana-de-açúcar, motivo de relevância na economia campista, área mencionada em histórias dos tempos de ditadura militar, cenário de relatos difíceis de ouvir e imaginar, a Usina Cambahyba voltou a ser foco de interesse por parte de autoridades, historiadores e curiosos. No final de outubro, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) aprovou, em primeira discussão, o Projeto de Lei 2.360/23, de autoria original da deputada Marina do MST (PT) e do presidente da Casa, deputado Rodrigo Bacellar (União), para determinar o tombamento por interesse histórico da Companhia Usina Cambahyba. A medida precisa passar por uma segunda votação em plenário e o tombamento tem como objetivo proteger o local de modificações que possam comprometer sua integridade histórica. 

O J3News esteve no local que carrega o peso da história de incineração de corpos e também mantém lembranças de pessoas que viveram os áureos tempos do ciclo da cana-de-açúcar. Em caso de tombamento, o projeto visa impedir qualquer destruição ou descaracterização da área, permitindo somente intervenções que estejam em conformidade com princípios de preservação e que promovam a criação de um espaço cultural.

Marina do MST e Rodrigo Bacellar (Foto: Octacílio Barbosa/Alerj)

“Além de impossibilitar que sejam feitas alterações nas características do Parque Industrial da Usina, o tombamento é uma forma de preservar a memória deste local. E o projeto de lei elaborado por mim visa, inclusive, possibilitar a implementação de espaço cultural no local, desde que preservadas as características. É uma forma de garantir o direito à memória, à verdade e à justiça com reparação pelas graves violações de direitos humanos ocorridos durante e após a ditadura nessa região, em Campos dos Goytacazes”, comentou a deputada Marina do MST (PT).

Dilcéia Smiderle

Histórias e memórias
A Usina Cambahyba pertencia à família de Heli Ribeiro Gomes, que foi vice-governador do estado (à época, o antigo estado do Rio) no período da ditadura no Brasil. A professora de História, Mestre em Políticas Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) e autora do livro “O multiforme desafio do setor sucroalcooleiro de Campos dos Goytacazes”, Dilcéa Smiderle, explica que as usinas eram a principal fonte geradora de empregos na região e tinham por tradição o domínio dos funcionários através de diversas benesses. “Forneciam casas, ambulatório médico e odontológico para a comunidade, bem como escolas de educação primária e ofício para os filhos dos funcionários”, explica Dilcéa.

Amaro Azevedo

Durante 22 anos, de 1973 a 1995, Seu Amaro Azeredo, de 68 anos, trabalhou na Usina Cambahyba. O idoso só saiu de lá com o fechamento do local. Na época, atuou como auxiliar geral e depois passou por diversas áreas na usina. “Rodei várias seções. Fui do almoxarifado, seção elétrica, pesagem de matérias-primas e produtos para fabricação, por exemplo”, conta.

Seu Amaro guarda com carinho as lembranças do tempo de trabalho. “Seu Heli sempre ajudou muito os funcionários. Foi uma pessoa que foi muito boa mesmo. Não tenho o que falar dele. Tinha colégio para as crianças, ajudava com roupas e alimentos”, diz o aposentado.

Mas a Usina Cambahyba foi enfrentando dificuldades financeiras até que precisou encerrar as atividades em 1995, deixando muitos desempregados. Mas não foi a única a passar por isso. “Com o final do subsídio dado pelo Governo Federal através do Programa Nacional do Álcool (Proálcool), no início do governo Fernando Collor de Mello, na década de 1990, grande parte das usinas de Campos e região fechou. De um total de 30, restaram inicialmente apenas quatro: Sapucaia; Paraíso, em Tocos; Santa Cruz; e Coagro (que de início, a partir de 2003, funcionava no que tinha sido a Usina São José, em Goitacazes, e em 2013 passou a funcionar na antiga Usina Sapucaia)”, diz a professora de História. Atualmente, só restam duas usinas no município: a Coagro (que anunciou ter firmado contrato de locação para reativar a antiga usina Paraíso) e a Canabrava, na divisa com São Francisco de Itabapoana.

Vitor Menezes

Documentário e ditadura
O jornalista Vitor Menezes dirigiu o documentário “Forró em Cambahyba” e destaca que, hoje em dia, as coisas estão muito diferentes por lá. “O cenário é de ruínas, não tem aquela efervescência da época em que a usina estava funcionando. Impressiona também o quanto que isso era uma realidade do ciclo do açúcar todo, o quanto que o interior da cidade já foi mais pujante, muitas localidades tinham cinema, uma vida social muito mais ativa, e boa parte disso se perde ao longo do tempo”.

A Usina Cambahyba também é o cenário quando os relatos são de um passado sombrio. Segundo o ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) do Espírito Santo, Cláudio Guerra, em depoimento a Comissão Nacional da Verdade, nos anos de 1974 e 1975 os fornos da Usina Cambahyba foi utilizado para incinerar corpos de 12 presos políticos mortos sob tortura na Casa da Morte, em Petrópolis, e no Doi-Codi do Rio de Janeiro, por equipes comandadas pelo major Freddie Perdigão Pereira.

Seu Amaro soube desta informação quando revelada pela mídia, mas não acredita. “Nunca ouvi sobre isso, ninguém sabia disso, iria ter cheiros. Fiquei surpreso”, comentou. Ao contrário do ex-funcionário, Vitor Menezes, que entrevistou Cláudio Guerra no documentário, acredita que o fato seja verídico. “A narrativa se encaixa muito, é claro que a gente ouve o outro lado, respeita a família, mas a quantidade de detalhes que ele coloca é muito grande. Enfim, todos esses pontos foram sendo ligados e é muito plausível e até compatível com várias outras atividades de empresas privadas naquele período”, diz Menezes.

O jornalista ainda lembrou que muitos cientistas sociais usam a expressão “ditadura cívico-militar” ou “militar-empresarial”. “Porque um regime daquele, militar, violento, do jeito que foi não se sustentaria apenas pela força e pelas estruturas burocráticas do governo. Eles tinham uma aliança muito forte com vários setores do empresariado”, afirma Vitor.

E conta que se impressionou com o jeito frio em que Cláudio Guerra falava sobre as pessoas incineradas. “Ele descreveu tudo que fez. Isso é sempre muito impactante, quando narrado assim, com uma naturalidade. Ali é um senhor experiente, e, segundo ele, arrependido dos seus crimes, contando tudo que fez e com muito detalhe”, recorda o documentarista.

“No nosso filme o herói morre”
Durante as gravações do documentário de Vitor Menezes, a morte de um dos líderes do Movimento Sem Terra, Cícero Guedes, chocou a equipe e colocou a Usina Cambahyba nas páginas policiais. O trabalhador rural foi brutalmente executado com tiros na cabeça e nas costas, numa estrada rural perto do Assentamento Oziel Alves, em Campos. Em 2019, em um julgamento feito pelo tribunal do júri, o principal suspeito por ser o mandante do crime foi inocentado. “Foi um baque enorme, porque o Cícero era uma liderança gigante. Desde que a gente foi para Cambahyba sabia que o herói do nosso documentário era o Cícero, e no nosso filme o nosso herói morre, o que é uma simbologia forte, inclusive, em termos das lutas sociais no Brasil, os nossos heróis morrem”, diz Menezes.

Ana Paula Saraiva

Amiga de Cícero, a líder do assentamento Cícero Guedes, Ana Paula Saraiva desabafa. “Até hoje a gente sofre com a sua partida inesperada, mas a luta não continua, e hoje o assentamento é homenagem a ele. O Cícero deixou um legado muito grande, e hoje tem várias feiras com o nome dele, eventos, um restaurante o homenageando. Mesmo com a sua partida brusca, o Cícero é um incentivo para a gente aprender a sobreviver e viver e lutar pela terra”, diz Ana Paula.

A deputada estadual Marina do MST chegou a Campos em 1996 com a tarefa de contribuir na organização do MST na região, e estava presente desde a primeira ocupação que houve na Usina Cambahyba junto com Cícero Guedes. “Cicero foi um companheiro que contribuiu muito com a organização da luta pela terra em Campos. Tinha seu lote e sua produção no assentamento Zumbi dos Palmares, mas pensava sempre além. Ajudou a construir todo o processo de comercialização dos produtos da região, por isso hoje, a Feira Estadual do MST se chama Feira Estadual da Reforma Agrária Cícero Guedes”, disse.

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) aprovou a criação do projeto de assentamento na área desapropriada, que ficou em disputa por várias décadas, e atualmente a área é ocupada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O assentamento tem o nome do líder do MST Cícero Guedes, assassinado a tiros em 2013. No início, 185 famílias foram assentadas, mas, no momento, apenas 14 famílias estão no local. Seu Amaro, ex-funcionário da usina, é uma dessas pessoas. Ele está no assentamento com a esposa há quatro anos aguardando o edital do instituto.