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Os reis da resistência

A Folia de Reis perdeu força e expressividade em Campos e região, mas há grupos que persistem na tradição cultural

Cultura
Por Ocinei Trindade
6 de janeiro de 2019 - 15h02

Estrela Guia de Guarus é única Folia de Reis em Campos atualmente(Foto: Reprodução)

O período natalino, dentro do calendário católico, encerra-se no dia 6 de janeiro, data em que se comemora também o Dia de Reis. A tradição refere-se aos três reis magos citados nos Evangelhos que teriam levado presentes para o Menino Jesus, o Messias Salvador ou Rei dos Reis. Há muitos séculos, católicos hispano-portugueses incorporaram a narrativa bíblica em um de seus festejos mais belos, vibrantes e coloridos: a Folia de Reis, também conhecida como Reisado. Porém, nos últimos anos, a manifestação popular tem perdido força no Brasil. Em Campos, atualmente, existe apenas uma Folia de Reis, a “Estrela Guia do Oriente”, de Guarus.

Durante todo o Século XX, diversos grupos de Folia de Reis podiam ser vistos em diferentes pontos do extenso município de Campos dos Goytacazes. Para Wesley Soares, mestre ou líder da Estrela Guia do Oriente, é triste ver a tradição se perder. Aos 24 anos, ele conta que desde os 10 anos participa do festejo. Herdou do pai, José Soares, a missão de dar continuidade à Folia que vem da época de seus avós, mas sem saber o tempo preciso. Todos os anos, entre 24 de dezembro e 20 de janeiro, o grupo de 17 pessoas percorre as ruas do Parque São José e de outros bairros vizinhos de Guarus, tocando e entoando cânticos. Os dois palhaços mascarados dançam e roubam a cena das apresentações por onde passam.

“Não conseguimos nos apresentar muito longe porque não há apoio de transporte ou cachê. Tiramos do próprio bolso para ir a um bairro distante. Às vezes, conseguimos arrecadar algum trocado em apresentações nas casas ou recebemos um lanche ou almoço. Não temos condições de viajar. Nunca participamos de festivais”, explica Wesley que trabalha como coletor de lixo em Campos.

A figura do palhaço assusta e entretém

Principais personagens da Folia de Reis:

– Três reis magos: representam os reis magos que visitaram Jesus e o presentearam com incenso, ouro e mirra.

– Mestre palhaço: responsável pela animação da festa, através de danças, pulos e brincadeiras.

– Coro: canta as músicas, louvores e entoações de cânticos religiosos.

– Mestre (também conhecido como embaixador): responsável pela organização da festa.

– Bandeireiro: espécie de porta bandeiras da festa. A bandeira geralmente é feita com tecido brilhante e tem a imagem dos três reis magos estampas.

– Festeiro: é em sua casa que geralmente ocorre a cerimônia da  “tirada da bandeira”.

– Banda musical: músicos uniformizados tocando violão, sanfona, zabumba, pandeiro, surdo, caixa, triângulo e flauta.

Estudos das Folias

Duas importantes Folias de Reis se destacam na cidade de Cardoso Moreira 

Para o professor do curso de pós-graduação em Cognição e Linguagem e Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Giovane do Nascimento, a Folia de Reis é extremamente importante para o Brasil, sobretudo no interior. “Destaco a relevância das folias no interior do Rio de Janeiro, além do Festival de Muqui, no Espírito Santo, que ajuda a manter a referência da manifestação. É lamentável a situação em Campos dos Goytacazes e em outras regiões. O poder público precisa se posicionar. Se não fosse o Festival de Muqui, a situação estaria pior”, cita Giovane.

De acordo com Giovane do Nascimento, a Folia de Reis é uma manifestação cultural importante e híbrida, com influência musical e artística de Portugal, África e dos povos indígenas brasileiros. Ele realiza uma série de pesquisas na Uenf sobre a musicalidade regional.  “Em breve, devo lançar um livro sobre o mapeamento sonoro do interior do Rio de Janeiro. Vai se chamar “Paisagens Sonoras do Interior”, onde abordamos jongos, folias e fados, entre outros ritmos”, comenta. Entre as pesquisas realizadas pela universidade, está a de Jorge Ray Gomes que dedicou-se à Folia de Reis, no município de Cardoso Moreira. Ele levantou as influências de todas as linguagens melódicas, harmônicas e rítmicas, além de registrar os sotaques e variações das folias naquela cidade.

Cardoso Moreira

Jorge Ray Gomes acompanhou por vários meses as Folias de Reis “Estrela do Oriente” e “Estrela do Bananal”, em Cardoso Moreira. Ele identificou a manifestação cultural em Italva, Itaperuna, Cambuci, São Fidélis e Porciúncula, mas ateve-se a estudar apenas a de Cardoso. “A cidade de Cardoso Moreira tem como sua maior manifestação cultural a Folia de Reis. A musicalidade local e tradicional tem histórico internacional. É um patrimônio imaterial. O conhecimento popular originário entre católicos. Ainda há uma resistência por parte dos evangélicos, onde percebi algum preconceito, mas as Folias resistem em Cardoso. Analisei a parte musical e o resultado de comparação de uma folia para a outra”, comenta.

Elenilton Figueira e a filha Sofia: herdeiros da Folia de Reis em Cardoso Moreira

A Folia de Reis “Estrela do Mar” possui 129 anos. O mestre Elenilton Figueira Mesquita, 46 anos, e desde os 8 no grupo, afirma que a tradição foi passada de geração em geração. Ele herdou do pai, Manoel Rosa Mesquita, a tarefa de prosseguir com a manifestação popular. “Considero o desaparecimento das folias devido à falta de apoio e incentivo públicos. A minha é mantida de pé graças aos esforços individuais dos membros do grupo. Fazemos apresentações de 24 de dezembro a 20 de janeiro, cumprindo nossa devoção e emoção. Há mais apresentações durante o ano em Muqui, Mimoso do Sul, Macuco, Cantagalo, Italva, São Sebastião do Alto”, diz Elenilton. A Estrela do Mar conta com 20 músicos e dois palhaços. “Cantamos a vinda de Cristo, anunciação. nascimento, padecimento, crucificação e ressurreição. O palhaço representa a maldade de Herodes que teria mandado três mascarados atrás dos Reis Magos que visitariam o Messias”, explica.

Folia em Campos

A historiadora Sylvia Paes lamenta que exista apenas uma Folia de Reis em Campos dos Goytacazes. “O esgarçamento da cidade é uma das razões. Campos se expandiu. A Folia de Reis é uma tradição de vizinhos e familiares. Muitos se mudam ou morrem, e isto faz com que se perca vitalidade e força. Outro problema é a figura do palhaço que incomoda nas áreas de tráficos de drogas. Por estar mascarado, representa alguma ameaça espiã entre grupos rivais. Isto acontece em Campos e em muitos locais onde a violência tem prevalecido”, destaca.

Outra fragilidade das folias de reis, na visão de Sylvia Paes, é que o poder público passou a exigir que os grupos culturais ou folclóricos tenham conta em banco e CNPJ para concorrer a editais de apresentações. “São muitas exigências burocráticas. Os grupos dependem de apoio público, mas, ao mesmo tempo, o poder público precisa prestar contas legalizadas. Então, custa caro abrir conta e manter empresas. Na última Conferência de Cultura, esses fatores foram colocados. Por outro lado, o poder público fica atado porque há exigências legais e burocráticas demasiadas, o que prejudica a manutenção de várias manifestações culturais. Isto ocorre também em entidades como Sesi e Sesc. Temos desafios pela frente em preservar a cultura”, conclui.