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Paraíba do Sul, o rio que espelha Campos

Entre a beleza e o abandono, rio faz parte da história e do cotidiano dos campistas

Especial J3
Por Leonardo Pedrosa
19 de outubro de 2025 - 0h01
Relevância|Além da paisagem que chama a atenção de quem passa, Paraíba do Sul é fonte de renda, lazer e de preocupação para os campistas. (Fotos: Silvana Rust)

“Paraíba, não tens que brigar com o ‘bicho-homem’. Sabes bem, que isso não é preciso, pois, apesar de tudo o que acontece, ainda continuas belo e forte e um dia… certamente, o homem tomará juízo”. O trecho do poema “Rio Paraíba do Sul, o rio da vida eterna”, escrito há 30 anos pelo professor e ambientalista Luiz Eduardo Corrêa Lima, resume o sentimento de reverência e dor que muitos campistas nutrem por um dos maiores símbolos da cidade.

Mais que um curso d’água, o Paraíba do Sul é a própria espinha dorsal de Campos. Ele passa pela história, desenha a paisagem e sustenta a vida de famílias que o veem como fonte de renda e identidade. Mas o mesmo rio que acolhe pescadores, esportistas e famílias em busca de sossego também reflete as contradições entre a beleza e o abandono.

O rio Paraíba nasce em São Paulo, corta Minas Gerais e deságua no litoral fluminense, abastecendo milhões de pessoas e sustentando um dos ecossistemas mais ricos do Sudeste. Em Campos, é paisagem e sustento. Mas, como lembra a bióloga Tatiane de Oliveira, doutora em Ecologia e Recursos Naturais pela UENF, o rio também carrega o peso dos impactos urbanos.

Tatiane de Oliveira (Foto: Arquivo Pessoal)

“O rio Paraíba do Sul possui grande importância não apenas para o nosso município, mas para três grandes estados. Em Campos, ele é ainda mais simbólico, porque faz parte da identidade da cidade e é fonte de abastecimento, lazer e sustento para muitas famílias. Do ponto de vista ecológico, o rio é um ecossistema vivo. Suas águas sustentam fauna, flora e microrganismos que mantêm o equilíbrio ambiental”, diz.

“Quando o esgoto e outros poluentes urbanos chegam até ele, esse equilíbrio é quebrado. Há redução do oxigênio disponível na água, perda de biodiversidade, proliferação de doenças e, em situações mais graves, o rio pode perder a capacidade de se regenerar. Para quem vive ou trabalha próximo, os efeitos são diretos. Na queda na qualidade da água, mau cheiro e prejuízos para atividades como pesca, agricultura e turismo”, completa Tatiane.

Rio como vida e palco de lazer
Em bairros que as águas do rio tocam, como o Caju, o Paraíba é mais que uma paisagem: é parte da rotina. Júlio César da Silva, de 50 anos, mantém o “Boteco do JP” às margens do rio. Ele observa que o movimento do comércio está ligado também à vida que passa pelas águas.

“Na minha visão, o rio Paraíba é um lugar maravilhoso. Moro aqui a vida toda. Muita gente sobrevive daqui e não dá valor. Nosso restaurante tem um grande público por estar próximo do rio. Falta um pouco de consciência das pessoas. A gente precisa conhecer mais, entender a importância de cuidar. Aqui no nosso bairro o pessoal tenta preservar, cuidar da mata na beira, e dá pra ver que esse pedaço ainda é bem conservado. Mas se olhar mais para frente, já não dá pra saber como está”, lamenta.

Jean Carlos Borges Pinto e sua filha Janiele (Foto: Arquivo Pessoal)

Há quem encontre no Paraíba um espaço para o corpo e a mente. Jean Carlos Borges Pinto, o “Transparente”, conhece o rio há 40 anos. Começou no remo olímpico aos 13 e, desde 2018, comanda uma escolinha de canoa havaiana que reúne praticantes em busca de esporte, saúde e conexão com a natureza.

“Remo no Paraíba há décadas, e posso dizer que cada remada é uma conversa com a história e com a natureza da nossa região. O rio muda o tempo todo, tem dias em que a superfície está lisa como um espelho e a gente sente o silêncio cortado só pelo som das pás. Em outros, o vento sopra forte e o corpo precisa se ajustar, entrar no ritmo da canoa e do grupo. Esses momentos lembram que o rio é vivo, que ele pulsa”, afirma.

Pescaria que virou amizade
Na beira da ponte General Dutra, o cenário é outro, mas o sentimento é idêntico. Lá, pescadores se reúnem todos os dias ainda logo ao amanhecer. O grupo, formado por aposentados, trabalhadores e curiosos, viu na pesca um ponto de encontro e até um canal no YouTube.

Marcos Antônio da Silva, pedreiro de 59 anos, criou o canal “Pescaria e Aventura do Zé”. Há quase três anos, ele decidiu transformar em vídeos o que vive ali às margens do rio: amizade, lazer e a paixão pela pescaria. Um celular preso a um pedaço de madeira com elástico registra todo cotidiano à beira do rio. “A ideia veio porque eu já acompanhava muitos pescadores e quis compartilhar também. Aí eu conversei com meu genro e ele preparou tudo e aí eu comecei fazendo. Nas horas vagas eu venho brincar e gravar. É uma terapia. Aqui todo mundo se ajuda e divide”, conta.

Pesca|Dionatan Porto e MArcos Antônio da Silva usam o Paraíba para lazer (Foto: Arquivo Pessoal)

Logo ao nascer do sol, mais de 20 varas são armadas. A rotina segue com bolo, café, suco e histórias de pescador. “Esse lugar aqui é maravilhoso. Pesco desde os 16 anos, e para mim é esporte. Já peguei uma tainha de 5kg e dividi com os vizinhos. Não é história de pescador, está lá no canal”, brinca Dionatan Porto, 38 anos. Jessé Ferreira, de 62, completa: “Pesco por lazer. Aqui a gente é família. A paciência faz parte do sucesso, como na vida. Nem todo dia a gente pega, mas só de estar aqui nessa paz do Paraíba, vale a pena”, diz.

Beleza e alerta
Apesar de seu papel vital, o Paraíba do Sul enfrenta pressões crescentes. O despejo de esgoto in natura em pontos como próximo a Ponte Alair Ferreira e na comunidade Tira Gosto é uma ferida aberta, como abordado pela bióloga. As ligações clandestinas nas redes pluviais e fiscalizações insuficientes ainda são comuns e afetam diretamente a qualidade da água e a saúde pública.

Outro problema é a estiagem prolongada, agravada pelas mudanças do clima. A baixa vazão tem preocupado especialistas, ameaçando o abastecimento e o equilíbrio do ecossistema. O tema foi destaque em reportagem recente do J3News que alerta para o risco de o rio “agonizar” sob o peso da seca e da pressão urbana.

Além da degradação ambiental, o uso do rio também resulta em tragédias. Na última terça-feira (7), o jovem Carlos Rafael dos Santos da Silva, de 14 anos, morreu afogado enquanto tomava banho no trecho no Parque Prazeres, ponto tradicional de lazer, mas sem infraestrutura de segurança.

Problema|Despejo irregular de esgoto é uma questão antiga no rio

Educação e preservação: um futuro que depende de todos
Na visão de “Transparente”, falta estrutura para transformar o rio em espaço de lazer pleno. “Falta incentivo, melhoria nos acessos, rampas, decks, iluminação, sinalização e integração com ciclovias. O rio deve ser visto como espaço de todos, não como limite da cidade. Também falta um calendário de eventos náuticos, como regatas, festivais, travessias, que mostre que o Paraíba é lugar de vida. Quando o campista volta a enxergar o rio como parte do cotidiano, o sentimento de pertencimento renasce. Quanto mais gente dentro d’água, mais viva fica a relação da cidade com o Paraíba”, defende.

Tatiane reforça que a mudança depende de ações conjuntas e de uma nova consciência coletiva. Enquanto isso, o rio que inspira poetas continua ali, resistente.

“Cenas de esgoto sendo despejado no Paraíba mostram como ainda tratamos o rio como um lugar sem valor. Para mudar isso, é preciso investir em saneamento, ampliar o tratamento de esgoto e fiscalizar os despejos irregulares. Mas também é essencial apostar em educação ambiental. Só com informação formamos cidadãos que se sintam corresponsáveis pela preservação. Isso começa nas escolas, mas também em associações e campanhas públicas. Quando as pessoas percebem que o Paraíba não é um ‘esgoto a céu aberto’, mas um patrimônio que garante água, lazer e oportunidades de trabalho, a relação muda. Quando o rio adoece, toda a cidade sente. Conservar o Paraíba é garantir qualidade de vida e futuro para quem depende dele, que somos todos nós”, afirma.