Diz um provérbio africano que é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança. A máxima reflete o que está previsto no artigo 227 da Constituição Federal de 1988: a educação e a socialização de jovens não são responsabilidade exclusiva da família, mas também da sociedade e do Estado.
Nos anos 2000, o cinema já retratava essa realidade. O filme “Cidade de Deus”, de 2002, dirigido por Fernando Meirelles e indicado ao Oscar no ano seguinte, mostrou como a falta de oportunidades e o abandono social levam crianças e adolescentes, desde muito cedo, a entrarem no mundo do crime, atraídos pela ilusão da violência e da ascensão rápida.
Em Campos dos Goytacazes, esse cenário ganha contornos preocupantes. De acordo com o Instituto de Segurança Pública (ISP), o número de adolescentes apreendidos por atos infracionais cresceu de forma expressiva no município. Entre janeiro e julho de 2025, foram 130 registros — um aumento de 150% em relação ao mesmo período de 2024. O comparativo histórico também evidencia a gravidade: no mesmo intervalo, foram 126 apreensões em 2020; 130 em 2021; 100 em 2022; 70 em 2023; 52 em 2024; e novamente 130 em 2025.
Para a delegada da 134ª DP de Campos, Carla Tavares, a relação entre tráfico de drogas e adolescência ainda é o fator central no crescimento dessa estatística. Fatores sociais e familiares (ou a falta deles) ainda são determinantes para o aumento da participação de adolescentes em crimes na cidade.
“Infelizmente essa realidade é igual em todo Estado e em Campos não é diferente. A maioria dos adolescentes apreendidos é por fato análogo ao crime de tráfico ilícito de drogas. Eu sempre acredito em educação de qualidade, quando temos a oportunidade de oferecer educação de qualidade e mostrar uma outra realidade aos jovens, a criminalidade já não é o único caminho viável. Muitos jovens veem no tráfico uma oportunidade de ‘ganho fácil’, isso precisa ser desmistificado”, destacou. O delegado da 146ª DP, Ronaldo Cavalcante, também foi procurado, mas não retornou o contato.
Na análise de Nilthon Moulin, presidente do Conselho Comunitário de Segurança (CCS) e servidor municipal que presta serviço à Polícia Civil, o problema envolve aspectos sociais, econômicos, educacionais, familiares e, muitas vezes, psicológicos.
“Vulnerabilidade leva muitos jovens a enxergarem no crime uma alternativa de sobrevivência ou ascensão social. Temos ainda a desestruturação familiar, a baixa escolaridade, a falta de perspectivas profissionais e a influência direta do tráfico, que oferece a ilusão de dinheiro fácil e status”, explicou.
Em meio à disputa por territórios estratégicos para o tráfico de drogas, facções criminosas têm recrutado adolescentes, colocando-os em atividades como tráfico, roubo, furto e até homicídios.
Apreensão e acompanhamento
O procedimento segue o que determina o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A apreensão pode ocorrer em flagrante ou por notícia do ato infracional. Depois, o adolescente é encaminhado ao juiz da Infância e da Juventude, passando por audiência de apresentação, defesa prévia e estudos, instrução e julgamento, até a definição das medidas socioeducativas.
O ECA prevê medidas em meio aberto — como advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade e liberdade assistida — ou em meio privativo de liberdade — semiliberdade e internação. Apesar de não serem penas, mas ações pedagógicas, as medidas obrigam o cumprimento pelo adolescente, com possibilidade de sanções em caso de descumprimento.
Segundo o Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase), atualmente 18 adolescentes de Campos cumprem medidas socioeducativas na instituição. O acompanhamento dos jovens, após o cumprimento, é feito pela Assessoria de Atenção ao Egresso, que conta com assistentes sociais, psicólogos e pedagogos, visando a integração em políticas públicas de educação, saúde, assistência social e profissionalização.
O Degase reforça que as medidas em meio aberto são de responsabilidade da Prefeitura. A Secretaria Municipal de Assistência Social e Cidadania atua por meio do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), que recebe os jovens e os encaminha para o cumprimento das medidas de serviço à comunidade ou liberdade assistida. A reportagem fez um pedido de informação à administração municipal sobre a atuação da secretaria, mas não obteve retorno até o fechamento da matéria.
O Ministério Público do Estado, na área da Infância e Juventude, promove o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos interesses das crianças e dos adolescentes, como, por exemplo, os direitos à vida, à saúde, à educação, à convivência familiar e comunitária, entre outros.
Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente
Quem também atua na prevenção e combate à criminalização de adolescentes são os Conselhos e Organizações da Sociedade Civil (OSCS). O presidente do Conselho Municipal de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMPDCA), o assistente social Álefe Ferreira, comentou o papel do órgão.
“Buscamos promover políticas públicas e fiscalizar ações que visam garantir seus direitos. O Conselho atua junto às OSCS que são registradas no conselho para trabalhar os adolescentes em situações de vulnerabilidade social. Quando encontramos situações que não visam a mudança desse público, encaminhamos o caso aos órgãos competentes para punir ou mesmo não renovamos o registro. É fundamental o fortalecimento da rede de proteção para garantir que as crianças e adolescentes tenham acesso aos seus direitos e monitorar os órgãos em que os adolescentes estão inseridos”, disse.
Fatores sociais e necessidade de políticas públicas
Moulin defende que o enfrentamento ao problema deve ser abrangente e envolver, de fato, a sociedade. “É importante frisar que a simples alteração da lei, como o debate sobre a maioridade penal, não resolve o problema na sua essência. A prevenção depende de políticas públicas articuladas, que envolvam família, comunidade, apoio psicossocial e jurídico”, disse.
“O enfrentamento à criminalidade juvenil não pode se limitar ao aspecto policial. Ele deve ser, sobretudo, social, educativo e comunitário. Só assim conseguiremos reduzir esses índices e oferecer aos nossos jovens caminhos concretos para uma vida longe da criminalidade”, finalizou.
Tempo de internação
A Comissão de Direitos Humanos (CDH) aprovou no dia 13 de agosto projeto que aumenta de três para até cinco anos o tempo máximo de internação de adolescentes que cometem atos infracionais. Para os casos praticados com violência, grave ameaça ou equiparados a crime hediondo, o período de restrição de liberdade pode chegar a até dez anos.
O PL 1.473/2025, do senador Fabiano Contarato (PT-ES), também altera atenuantes por idade que diminuem o tempo de prescrição da pena (fim do tempo do direito de punir alguém). A matéria segue agora para decisão final na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).