Desde o ano de 1740, a Igreja Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores é um ícone da paisagem urbana de Campos dos Goytacazes. Ela faz parte do patrimônio imobiliário da Santa Casa de Misericórdia, que acabou de ceder o espaço para a Prefeitura Municipal, em contrato de comodato. O arquivo de documentos da Secretaria de Fazenda está sendo acomodado no edifício, semanas depois de este ter sofrido arrombamento e furto, no dia 29 de junho. Houve depredação de imagens no templo, que é aberto apenas aos domingos para a missa matinal. A insegurança do local gerou críticas e preocupações. Uma nova função ou ocupação do prédio é encarada por arquitetos e historiadores como algo a ser analisado com atenção.
A construção do século XVIII possui uma capela, pátio central, muitos cômodos, além de diversas dependências e anexos que foram incorporados ao longo do tempo, no endereço conhecido como Curva da Lapa, às margens do Rio Paraíba do Sul. No passado, foi sede de um asilo para meninas abandonadas, escola infantil e, ainda, de um curso de formação profissional até 2024, quando o Instituto Profissional Nossa Senhora da Lapa encerrou suas atividades.
A ociosidade e a falta de vigilância tornaram o prédio histórico um alvo fácil de criminosos, que furtaram peças e destruíram imagens de santos e alguns símbolos religiosos no mês passado. A reportagem tentou por vários dias ouvir a direção da Santa Casa sobre os prejuízos e as providências a serem tomadas, mas não houve respostas. No local, dois servidores municipais disseram que o prédio passaria a ser ocupado pelo arquivo da Secretaria Municipal de Fazenda dentro de alguns dias. Muitos documentos já estavam sendo transferidos da antiga sede alugada, na Rua 13 de Maio. Em nota, a Prefeitura de Campos informou:
“De acordo com a Secretaria de Fazenda de Campos, está sendo feita a mudança para o prédio da Santa Casa até a próxima sexta-feira. O arquivo da secretaria vai ficar em salas que comportam com segurança o material. Apenas alguns ajustes na parte elétrica serão feitos. O intuito seria uma economia no antigo endereço, onde o arquivo era alugado. Em contrapartida, a Prefeitura vai fornecer, por meio de um contrato de comodato, a segurança patrimonial do novo endereço, feita pela Guarda Municipal”, afirma.
Genilson Soares é pesquisador e integrante do Instituto Histórico e Geográfico de Campos dos Goytacazes. Ele considera positiva a ocupação do prédio pela Prefeitura Municipal:
“Vejo com bons olhos. Ali funcionou há muito tempo o Asilo da Lapa e uma escola de auxiliar de enfermagem. A ocupação do espaço e a manutenção vão ajudar a preservar o imóvel. Quando um prédio fica fechado, ele acaba se deteriorando. Então, eu vejo isso como uma ação positiva. A preocupação que temos com esse prédio, principalmente nas primeiras salas que dão para a rua, é com o material de grande importância histórica e cultural para Campos — como quadros, móveis, objetos e até mesmo a roda dos expostos, que está guardada lá. Isso que nos deixa apreensivos: garantir a manutenção e a boa conservação dessas peças”, diz.
Insegurança local
Alguns dias depois de a Igreja da Lapa ser arrombada e vandalizada, um bar-restaurante vizinho ao prédio também foi alvo de ladrões. Suspeitos entraram no estabelecimento de madrugada, com rostos cobertos, e levaram equipamentos, mantimentos e bebidas. Imagens das câmeras de vigilância flagraram os criminosos, que não foram identificados nem localizados.
O dono do bar é o empresário Robson Moraes. Ele disse que a segurança foi reforçada com vigia e mais câmeras nas dependências: “Espero que os criminosos sejam identificados. Há muitos dependentes químicos circulando no bairro. Parte do Cais da Lapa virou cracolândia. A gente precisa reforçar a segurança pública e evitar mais problemas e prejuízos. Isto afetou nossas contas e despesas, pois abrimos o bar há pouco mais de seis meses”, comentou.
Por meio de nota, a assessoria de imprensa da Secretaria de Estado da Polícia Militar informou que o 8º BPM intensificou o policiamento na região:
“Em muitos casos, os crimes de furto são praticados por cidadãos em situação de vulnerabilidade nas ruas, num cenário composto por demandas que requerem a atuação de outros entes do poder público, atores estes que a Polícia Militar está sempre à disposição para auxiliar de maneira conjunta. No ano de 2024, mais de 2.700 criminosos foram retirados das ruas na área de atuação do 8º BPM, inclusive na região mencionada. Reforçamos a importância do acionamento de nossas equipes diante de situações flagrantes via App 190 RJ e Central 190, assim como dos registros em delegacia, que são de extrema importância para a condução dos procedimentos investigativos.”
Responsável pelo Programa Segurança Presente em Campos, o capitão da PM Luciano Tavares afirma que a maioria dos furtos acaba ocorrendo no período da madrugada. Os agentes atuam das 7h às 22h. “Este é um horário em que não atuamos. Temos uma filosofia própria e específica de atuação: trabalhamos com base na abordagem de proximidade e no contato direto com a população, por isso focamos nesses horários e locais. São cerca de 50 bairros do Estado, sempre em locais com maior concentração de pessoas, comércio e fluxo. O que fazemos para tentar coibir os furtos? A maioria é cometida por pessoas em situação de rua. É um problema que muitas vezes foge do nosso controle e também do controle dos órgãos policiais. Esse é um trabalho que precisa ser realizado por diversos órgãos, principalmente municipais, para tentar melhorar a situação dessas pessoas”, revela.
Nova fase e perspectivas
A reportagem registrou parte da mudança do acervo da Secretaria de Fazenda para o prédio do complexo da Igreja da Lapa. No interior, a igreja está bem preservada, mas o mesmo não ocorre em vários cômodos do edifício, que tem características típicas dos solares e mosteiros, com capela e pátio interno. Anexos e quartos possuem vidros quebrados, forros soltos, vegetação em parte da fachada e telhados, e falta de conservação de áreas e anexos. O arquiteto e urbanista José Luis Puglia avaliou esta nova função do prédio histórico:
“A igreja é um patrimônio importantíssimo dentro do panorama urbano da cidade. É uma construção em estilo colonial barroco, com pouca riqueza de ornamentação e que não chama atenção por exibir, em seu ambiente interno, materiais nobres ou que ostentem luxo e requinte. Mas, independentemente desses aspectos, é um dos prédios mais icônicos da cidade. A utilização do prédio anexo, que já teve vários usos no decorrer dos anos, encontra-se abandonada. É necessário ter um uso para o espaço até para que possamos conservá-lo e preservá-lo. Tenho dúvidas quanto a seu uso como arquivo de documentos, por conta da sua arquitetura antiga e da necessidade de manutenção constante, uma vez que esses prédios antigos apresentam muitas infiltrações, goteiras e o próprio sistema de cobertura não ajuda a evitar esses problemas. Meu temor é acontecer o que está ocorrendo com o Museu Olavo Cardoso. A fiscalização da sociedade em geral ajuda a resgatar o nosso riquíssimo e combalido patrimônio arquitetônico”, explica.
A historiadora Graziela Escocard defende responsabilidade, sensibilidade histórica e compromisso com a preservação.
“Essa ocupação pode ser um passo importante para salvar a Lapa do abandono. Mas, se for tratada apenas como uma solução funcional, corre-se o risco de descaracterizar o imóvel e deixar de lado o que ele representa na memória da cidade. A ocupação evita o abandono do local. Imóveis históricos sem uso tendem a se deteriorar mais rapidamente e viram alvo fácil de vandalismo e invasão, como infelizmente já aconteceu com a Lapa. Essa igreja é um dos poucos remanescentes arquitetônicos do período colonial em Campos. A preservação da Igreja da Lapa e de outras igrejas tombadas é uma tarefa que ultrapassa a conservação física: é um ato de cuidado com a memória, com a fé, com a identidade e com a dignidade histórica da população campista”, conclui.