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Escândalo de fisioterapias no Hospital Álvaro Alvim

Unidade de Saúde e ONG Pillar são alvo de investigações do MP e FMS, que apontam superfaturamentos

Especial J3
Por Redação
15 de junho de 2025 - 0h01
Terceirização|Álvaro Alvim é responsável por contratar a ONG (Fotos: J3News)

O J3News obteve acesso com exclusividade ao inquérito civil instaurado pela 3ª Promotoria de Justiça do Ministério Público na cidade de Campos dos Goytacazes, que investiga suposto ato de improbidade administrativa envolvendo a destinação de verbas públicas para serviços de fisioterapia no município, onde o Hospital Álvaro Alvim e a “ONG” Pillar estão no centro das denúncias. O documento destaca que trata-se de uma instituição não contratualizada pelo município, e que presta serviços de fisioterapia para a Fundação Benedito Pereira Nunes (FBPN), mantenedora do hospital. 

O inquérito apura supostas irregularidades nos faturamentos apresentados pela associação, com possível enriquecimento ilícito da Fundação Benedito Pereira Nunes e da Associação Filantrópica Pillar. A reportagem apurou, também com exclusividade, que uma auditoria interna concluída em setembro de 2024, conduzida pelo Núcleo de Regulação, Contratualização e Auditoria da Secretaria Municipal de Saúde, aponta para uma estimativa de desvio de dinheiro público municipal de R$ 4,9 milhões, entre 2018 e 2024. Somando à verba federal, o montante estimado chega a R$ 9,9 milhões desviados neste período. A auditoria foi citada em reunião aberta do Conselho Municipal de Saúde, no último dia 3 de julho.

Muitos atendimentos|Segundo auditoria, Pillar teria inflado número de sessões de fisioterapia

Os fatos
Maio de 2012. Estevão Souza de Azevedo, um membro do Conselho Municipal de Saúde aponta possível superfaturamento na prestação do serviço de fisioterapia feito pela Santa Casa de Misericórdia ao município de Campos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A denúncia defende o encerramento do convênio. O órgão acata. 

Julho do mesmo. A Fundação Benedito Pereira Nunes (FBPN), por meio do Hospital Escola Álvaro Alvim, insere em sua contratualização com a Secretaria Municipal de Saúde os serviços de fisioterapia ambulatorial e especializada. Em seguida, a Fundação firma Acordo de Cooperação Técnico-Administrativo e Financeiro com a Associação Filantrópica Projeto Pillar, para prestação do serviço no SUS da cidade. O acordo com o município é firmado. O mesmo conselheiro que havia denunciado o convênio anterior, é testemunha da assinatura deste.

Maio de 2024. A Prefeitura de Campos muda o sistema da Saúde do município. A Subsecretaria de Regulação em Saúde inicia uma regulação em todos os serviços de saúde prestados no município, incluindo hospitais contratualizados. É aí que o Projeto Pillar volta à pauta. 

Hospital|Álvaro Alvim contratou ONG para fazer atendimentos

O “Pillar” do esquema
O J3 também teve acesso à auditoria feita pelo município, que reuniu e confrontou dados da prestação do serviço de fisioterapia pela Associação Filantrópica Pillar desde 2018. Naquele ano, a instituição declarou em relatório repassado ao Álvaro Alvim, que haviam sido feitas 66 mil sessões de fisioterapia na unidade. Uma média de 5,5 mil por mês. Em 2019, o número teve aumento significativo: 100 mil procedimentos informados. A média sobe para 8,4 mil mensais. 

A frequência segue aumentando em 2020, mesmo sendo esse ano marcado pelo início da pandemia da Covid-19. Nesse ano, o relatório do Projeto Pillar apresenta 122 mil atendimentos. Em 2021, sobe para 160 mil – média de 13,3 mil por mês. Em 2022, os números começam a impressionar. A frequência relatada é de 257,8 mil procedimentos. A média mensal cresce para 21,5 mil e a diferença de um ano para o outro é de quase 100 mil atendimentos relatados. Em 2023, o ápice: 346,5 mil sessões de fisioterapia são apresentadas em relatório da Pillar repassado ao Álvaro Alvim. São 28,8 mil por mês. Em 2024, são 295,4 mil procedimentos declarados – média de 24,6 mil atendimentos mensais. 

Mas o ano de 2024 tem mais números que chamam bastante atenção. A média mensal de sessões de janeiro a julho é de 32 mil. Considerando que junto ao Conselho Nacional de Estabelecimento de Saúde (CNES), a Pillar tem 16 fisioterapeutas registrados (14 fazendo 30 horas semanais, um de 20h e outro de 10h) e considerando que a regulação do município verificou que o espaço tem apenas quatro salas, a capacidade máxima de produção apontada pelo Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (Crefito) é de pouco mais de 10 mil sessões mensais e 2.520 semanais. Muito distante da média apresentada pela instituição junto ao DATASUS, que é de 32.096 sessões ao mês e 8.024 por semana. 

Fevereiro de 2024 teve apenas 18 dias úteis. Mesmo assim, é o segundo mês com a maior frequência já apresentada pela Pillar: 32.777 sessões. São 1.820 fisioterapias por dia. O que significa 227 procedimentos por hora. A auditoria da Prefeitura aponta, com base no Crefito, que para executar esse número seriam necessários 56 fisioterapeutas simultaneamente atendendo, sem que nenhum paciente faltasse às suas sessões, contabilizando que cada fisioterapeuta poderia atender simultaneamente quatro pacientes. O mês que apresentou recorde em todo o histórico foi julho: 32.945 atendimentos. Neste mês, logo no dia 1º, foram registradas 300 sessões feitas por uma única fisioterapeuta.

Arrecadação milionária
Com essa frequência de trabalho apresentada, a Associação Filantrópica Pillar arrecadou milhões nos últimos anos com o serviço de fisioterapia. Desde 2022, a arrecadação anual da instituição ultrapassa a casa do milhão. Foram R$ 1.283.073 em 2020, R$ 1.682.141 em 2021, R$2.730.164 em 2022, R$ 3.625.474 em 2023 e R$ 3.048.44 em 2024. Os valores simbolizam os repasses municipais e federais direcionados à instituição por ela prestar serviço para o SUS. 

A arrecadação superior a R$ 2 milhões começa em 2022, ano em que a reportagem apurou que Edgard Andrade Corrêa assumiu cargo financeiro na Fundação Benedito Pereira Nunes. Em 2012, quando começou o convênio com o município, ele era diretor-presidente da Pillar. 

Regulação e queda brusca
O município iniciou efetivamente um trabalho de reorganização e regulação do fluxo da fisioterapia em outubro de 2024. Em novembro, a frequência apresentada em relatório pela Pillar teve uma queda brusca. Foram registrados apenas 581 atendimentos. Em dezembro, o número se estabilizou em 1.342 atendimentos. Tinham sido registrados 23.188 atendimentos em outubro, 20.487 em setembro e 25.359 em agosto. Além da média superior a 32 mil sessões entre janeiro e julho. 

Quando se traça um comparativo entre os três primeiros meses de 2024 e o mesmo período de 2025 – já com a regulação -, a discrepância também chama atenção. Em janeiro de 2024, foram 29.799 fisioterapias declaradas. No mesmo mês de 2025, aparecem 2.768 atendimentos. Em fevereiro de 2024 (com apenas 18 dias úteis), foram 32.777 sessões. Em fevereiro de 2025, constam 3.588 procedimentos. Em março, 32.021 fisioterapeutas foram declaradas. No mesmo mês já neste ano, foram 3.279.

Divergências nos dados da Pillar chamam atenção
Uma simples consulta ao CNPJ da Associação Filantrópica Pillar mostra como principal atividade econômica o seguinte segmento: “atividades de associações de defesa de direitos sociais”. Como atividade secundária, outra área distinta: “atividades de organizações associativas ligadas à cultura e à arte”. O que diverge com o registro da Pillar no Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde (CNES), onde a instituição aparece como prestadora de serviço de fisioterapia, atenção ao pré-natal, parto e nascimento. Também chama atenção o fato de que em seu registro no CNES, a instituição apresenta os serviços como privados, não da rede SUS. Ao mesmo tempo, presta serviços vinculados ao SUS. 

Prefeitura confirma auditoria e regulação
Em nota enviada ao J3News, a Prefeitura confirmou que realizou a auditoria e a regulação na saúde, diante da abertura do inquérito pelo MP. “A Secretaria Municipal de Saúde de informa que tomou ciência do inquérito aberto pelo MP em 2019 e que contribuiu com todas as informações solicitadas, além de ter realizado auditoria concluída em setembro de 2024, com reorganização e regulação do fluxo da fisioterapia do município”, diz a nota.

Fundação Benedito Pereira Nunes critica denúncia
Em resposta ao J3, a FBPN criticou o método de cálculo apresentado na denúncia, afirmando que ele não reflete a realidade prática da prestação de serviços de fisioterapia ambulatorial, baseando-se em suposições teóricas e parâmetros que não têm força de lei. A Fundação declarou ainda que “as atividades econômicas listadas no CNPJ da entidade (Associação Filantrópica Projeto Pillar) não invalidam ou descaracterizam os serviços efetivamente executados no âmbito da saúde pública. Sobre a nomeação de Edgard Andrade Corrêa, a FBPN afirma que “não possui qualquer relação direta com o volume de procedimentos informados ou com as atividades da entidade conveniada”. 

Confira a nota na íntegra:

A Fundação Benedito Pereira Nunes (FBPN), por meio do Hospital Escola Álvaro Alvim, vem a público prestar os seguintes esclarecimentos diante das informações veiculadas e do inquérito civil instaurado pelo Ministério Público:

  1. Legalidade e Transparência no Registro dos Procedimentos
    Todos os procedimentos de fisioterapia realizados sob a contratualização com a Secretaria Municipal de Saúde são devidamente informados, processados e validados na base oficial do Sistema Único de Saúde (SUS), por meio do Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA-SUS).
    Este sistema realiza críticas automatizadas e cruzamentos técnicos para garantir a consistência das informações registradas, não sendo possível inserir dados sem que passem pelos filtros e validações do próprio Ministério da Saúde.
  2. Atendimento é Diferente de Procedimento
    Ressaltamos que há diferença técnica entre “atendimento” e “procedimento”. Um único paciente pode realizar mais de um procedimento por atendimento, conforme prescrição médica e protocolos clínicos, o que pode gerar interpretações equivocadas quando os números são analisados de forma superficial.
  3. Capacidade Técnica e Documentação Comprobatória
    Todos os procedimentos informados possuem documentação comprobatória arquivada, com prontuários, fichas de atendimento, escalas de profissionais e registros de produção. Essa documentação está à disposição dos órgãos competentes para qualquer auditoria técnica que se julgue necessária.
  4. Sobre o Método Apresentado pela Denúncia
    O método de cálculo apresentado na denúncia não reflete a realidade prática da prestação de serviços de fisioterapia ambulatorial, baseando-se em suposições teóricas e parâmetros que não têm força de lei, tampouco constam em resolução normativa do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Trata-se de recomendações técnicas, que não substituem o que é efetivamente pactuado e autorizado no âmbito do SUS.
  5. Sobre a Associação Filantrópica Pillar
    A Fundação Benedito Pereira Nunes possui Acordo de Cooperação com a Associação Filantrópica Pillar desde 2012, com atividades voltadas à prestação de serviços de saúde no SUS, conforme registrado no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES).
    As atividades econômicas listadas no CNPJ da entidade não invalidam ou descaracterizam os serviços efetivamente executados no âmbito da saúde pública. A prestação de serviços pela Pillar é reconhecida no sistema oficial do Ministério da Saúde.
  6. Sobre os Fatos de 2022 e a Gestão da Fundação
    A nomeação do Sr. Edgard Andrade Corrêa para função interna na Fundação não possui qualquer relação direta com o volume de procedimentos informados ou com as atividades da entidade conveniada. A gestão da FBPN sempre se pautou pela responsabilidade institucional, legalidade e transparência, com ampla colaboração às autoridades de controle e fiscalização.
  7. Compromisso com a Verdade e com a Sociedade
    A FBPN confia que as autoridades competentes farão a devida apuração dos fatos com base em documentos técnicos oficiais e não em conjecturas ou análises descoladas da realidade operacional do SUS. Esperamos que a verdade prevaleça, como sempre ocorreu em toda a trajetória da Fundação, que atua há décadas com responsabilidade social e compromisso com a saúde pública.
  8. Sobre o Momento em que Surge a Denúncia
    Convenientemente, essa denúncia surge justamente quando vêm à tona escândalos envolvendo o possível desvio de R$ 220 milhões da saúde pública, empresas investigadas e, supostamente, membros da cúpula da Secretaria Municipal de Saúde. Coincidência? Talvez. Ou, quem sabe, apenas uma clássica “bomba de fumaça” — um enredo já conhecido, com personagens de sempre, tentando distrair a plateia enquanto o verdadeiro espetáculo ocorre nos bastidores.
    Enquanto isso, seguimos trabalhando. Porque cuidar de gente é o que sabemos fazer.

O J3News tentou contato com o Projeto Pillar, mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria.