De 22 a 29 de abril, o mundo se mobiliza em torno da Semana Mundial dos Erros Inatos da Imunidade (EII), uma iniciativa global que lança luz sobre mais de 500 doenças genéticas raras que afetam o sistema imunológico.
Também conhecidas como Imunodeficiências Primárias, essas condições podem fazer com que infecções comuns se tornem recorrentes, graves e até fatais.
Nesta entrevista, realizada por Dr. Luiz Bandoli, Cristiane Monteiro revela como o diagnóstico tardio de uma doença imunológica afetou sua vida.
Como foi o processo até chegar ao diagnóstico do erro inato da imunidade? Houve demora ou diagnósticos incorretos antes?
O diagnóstico só veio três anos após os primeiros sintomas, que começaram logo depois do nascimento do meu primeiro filho. Tive três mastites com abscessos, acompanhadas de febres constantes, mesmo usando antibióticos. Depois disso, comecei a ter infecções intestinais, muitas diarreias e um emagrecimento rápido e acentuado. Foi nessa fase que descobriram que eu estava com esplenomegalia (aumento do baço) e já me encaminharam para a cirurgia de retirada do órgão. No entanto, durante os exames pré-operatórios, fui diagnosticada com tuberculose e precisei fazer tratamento por seis meses. Mesmo assim, a tosse com secreção, o cansaço extremo e as febres continuaram, mesmo após o tratamento. Depois disso, vieram as pneumonias de repetição, sinusites e infecções respiratórias mais graves. Os antibióticos orais já não funcionavam mais e, em algumas crises, precisei ser internada para tomar medicação na veia. Durante uma dessas internações, foi feita uma biópsia pulmonar, que revelou uma pneumonia intersticial linfocítica — e aí começou a suspeita de uma doença imunológica. Somente um ano depois, fui finalmente encaminhada a um imunologista, que fechou o diagnóstico de Imunodeficiência Comum Variável, um tipo de Erro Inato da Imunidade. Foi um caminho longo, com muitos diagnósticos equivocados e um sofrimento que poderia ter sido evitado com um reconhecimento mais rápido.
Você recebeu explicações claras sobre sua condição após o diagnóstico?
Não recebi explicações claras sobre a minha doença nem sobre a gravidade da condição. Apenas me disseram que era uma doença genética e que eu precisaria tomar uma medicação de alto custo pelo resto da vida. Saí da consulta com o imunologista carregando uma pilha de papéis para tentar conseguir o medicamento pelo SUS e trazê-lo ao hospital para ser aplicado — mas sem nenhuma orientação sobre o que aquilo realmente significava. Foi um momento muito assustador e desesperador. Eu estava completamente perdida, sem entender o que estava acontecendo. Como não recebi nenhuma informação médica adequada, fui atrás por conta própria. Em 2002, eu não tinha acesso à internet, então fui a uma biblioteca e comecei a pesquisar tudo que conseguia sobre a doença, tentando entender como seria minha vida dali em diante. Foi um processo solitário: longe da minha cidade, sem rede de apoio, com um bebê pequeno nos braços e cheia de dúvidas. Mas foi justamente por ele, meu filho, que encontrei forças para continuar e enfrentar tudo o que viria pela frente.
Na hora, senti um certo alívio por finalmente ter um diagnóstico. Depois de tanto tempo e sofrimento, eu tinha um nome para tudo aquilo — e, o mais importante, havia tratamento. Mas, ao mesmo tempo, faltou acolhimento e orientação. A luta pelo diagnóstico terminava ali, mas uma nova jornada começava — e eu tive que enfrentá-la praticamente sozinha.
Você consegue acessar regularmente os medicamentos e/ou terapias necessárias para o tratamento? Há dificuldades?
No começo, foi muito difícil conseguir acesso à medicação. Tive que enfrentar um verdadeiro caminho burocrático, com várias idas e vindas à Secretaria de Saúde da minha cidade e, depois, à Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro. Foram meses de espera, incertezas e desgaste emocional. No início do tratamento, precisei entrar na Justiça várias vezes para garantir o fornecimento do medicamento que, além de essencial para minha saúde, era de alto custo e inacessível por outros meios. Hoje em dia, consigo receber a medicação de forma mais regular, mas só cheguei a esse ponto depois de muita luta, insistência e enfrentamentos com o sistema de saúde. A sensação, no começo, era de estar sozinha contra tudo — e isso só tornava a jornada ainda mais difícil.
Já enfrentou períodos sem medicação por falta de estoque, problemas de entrega ou burocracia? Como isso afetou sua saúde?
Sim, infelizmente, ao longo desses 23 anos de tratamento, enfrentei várias interrupções no fornecimento da Imunoglobulina pelo SUS. Em alguns momentos, a medicação simplesmente faltava nos estoques, e em outros, o problema era burocrático, com atrasos nas entregas ou falhas no sistema de distribuição. O pior momento foi quando fiquei um ano inteiro sem receber a medicação. Essa ausência no tratamento teve consequências muito sérias para minha saúde: meu quadro se agravou, surgiram doenças autoimunes associadas e desenvolvi sequelas que carrego e preciso tratar até hoje. Esses períodos sem a medicação comprometem não só o tratamento, mas também a qualidade de vida e a esperança do paciente. Cada mês sem o remédio é um risco real e um retrocesso no que foi conquistado com tanto esforço.
Como a condição afeta sua rotina diária (trabalho, atividades sociais)? Há adaptações na rotina que você precisou fazer?
Minha rotina foi completamente transformada por causa da doença. No trabalho, não consegui me manter produtiva ao longo do tempo devido à fragilidade física, às infecções frequentes e à necessidade constante de tratamentos em várias especialidades médicas. São muitas consultas, exames, infusões e terapias, o que exige uma grande disponibilidade de tempo e energia. A vida social também ficou bastante limitada. Hoje, passo a maior parte do tempo em casa, evito locais com aglomerações, não saio em dias frios ou chuvosos e não costumo comer fora de casa, tudo para reduzir os riscos de infecção. Essas adaptações foram sendo aprendidas com o tempo e com a experiência. No começo, foi muito difícil. Imagina, aos 22 anos, eu tinha uma vida ativa, normal, e de repente, tudo mudou. Precisei reorganizar completamente meu estilo de vida. Hoje entendo que não vale a pena me arriscar. Aprendi a me cuidar com mais consciência, mesmo que isso signifique abrir mão de muitas coisas.
Quais são os principais desafios que você enfrenta no acompanhamento contínuo da sua condição?
O tratamento é cansativo e contínuo, sem pausas. Um dos maiores desafios é justamente ter que acompanhar a doença em várias especialidades médicas. Isso significa passar boa parte do tempo em hospitais, fazendo exames, indo a consultas e realizando infusões, além de lidar com as sequelas e outras condições que surgem com o tempo. Mas o lado mais difícil, sem dúvida, é o emocional. Preciso estar constantemente preparada para as incertezas, para os sintomas novos e para possíveis complicações inesperadas da doença. Viver com uma imunodeficiência é também um exercício diário de resiliência emocional.
O que você gostaria que mudasse no sistema de saúde para melhorar o atendimento a pessoas com erros inatos da imunidade?
Acredito que muita coisa precisa mudar. O primeiro passo seria investir em campanhas nacionais de conscientização e informação, para que o diagnóstico precoce se torne realidade. Muitas pessoas ainda sofrem por anos sem saber o que têm — como foi o meu caso — e isso poderia ser evitado com mais informação e preparo dos profissionais de saúde. Também é fundamental garantir melhores condições de tratamento, com acesso regular e ágil aos medicamentos e exames específicos, que são essenciais para o acompanhamento contínuo da doença. Outro ponto importante é a estrutura: é preciso haver salas de infusão adequadas e adaptadas, com segurança e conforto para pacientes que fazem uso de medicamentos que apresentam risco de reações adversas. Esses espaços devem ser pensados para acolher o paciente com imunodeficiência, que já chega fragilizado e precisa de cuidado especializado. Mais do que tudo, precisamos de um sistema de saúde que entenda as particularidades das doenças raras e imunológicas — e que ofereça o suporte integral que esses pacientes precisam para viver com dignidade.
Eu te conheço faz algum tempo e sei o quanto você é engajada na causa. Que mensagem você deixaria para um paciente e pais de pacientes que receberam o diagnóstico de EII?
Estou nessa jornada há 26 anos, lutando todos os dias pela minha saúde e qualidade de vida. O que aprendi nesse tempo é que essa condição não nos define. Nós temos o direito a um tratamento digno, respeitoso e acessível, assim como qualquer outra pessoa. Minha maior mensagem é: não desistam de lutar pelos seus direitos. Sei que, muitas vezes, parece solitário — e de fato, lutar sozinho é muito cansativo. Mas quando nos unimos, tudo se torna mais leve. Por isso, incentivo todos os pacientes e familiares a se conectarem, a buscarem apoio, a formarem redes de solidariedade e mobilização. Ao longo dos anos, criei vários grupos nas redes sociais com esse propósito: acolher, orientar e fortalecer. Foi assim que nasceu o perfil @vivendocomeii, no Instagram e no Facebook, onde compartilho informações e apoio. Ali, encontrei uma nova família — a Família Imuno. Transformei minha dor em propósito, e tudo o que aprendi e conquistei, compartilho com quem está nessa mesma caminhada. Juntos, somos mais fortes — e podemos fazer a diferença na vida uns dos outros.