A reportagem especial desta semana no J3News, “Feriado nacional para a Consciência Negra” (leia aqui) destaca uma série de ações de educadores, lideranças e profissionais que promovem a inclusão de pessoas negras no mercado de trabalho e no combate ao racismo em Campos dos Goytacazes. O subsecretário de Igualdade Racial e Direitos Humanos, Gilberto Firmino, é popularmente conhecido como Totinho Capoeira. Ele está no comando do órgão que é subordinado à Secretaria de Desenvolvimento Humano e Social desde o início do governo Wladimir Garotinho. Nesta entrevista, ele destaca uma série de reflexões sobre o 20 de Novembro que presta homenagem à memória de Zumbi dos Palmares, além de políticas públicas e promoção da igualdade racial e dos direitos humanos no município.
Este mês também chamado de Novembro Negro e o dia 20 têm algo que precisa ser destacado sobre a ocasião especificamente?
A Secretaria e a Subsecretaria hoje se propõem ao combate ao racismo e à promoção da igualdade racial. Promover a igualdade racial ocorre através de vários mecanismos, assim como o combate ao racismo, que também envolve diversas ações. Uma das iniciativas mais importantes para promover a igualdade racial é o desenvolvimento de ações afirmativas. Por exemplo, temos o curso pré-vestibular e o curso preparatório para concursos, além de cursos voltados à geração de renda, como os de manicure, cabeleireiro, entre outros. Esses cursos proporcionam uma oportunidade para pessoas com baixa escolaridade gerarem sua própria renda.
Os cursos pré-vestibulares e preparatórios para concursos públicos são mais técnicos, e todos eles constituem uma grande ação afirmativa. Ou seja, eles têm o objetivo de reparar danos causados a grupos historicamente excluídos das agendas públicas. Ao oferecer essas atividades e cursos, estamos trazendo de volta, para dentro da estrutura do poder público, esses grupos minorizados que foram excluídos ao longo da história.
Se eu pudesse destacar alguns dos mecanismos que dão visibilidade à Secretaria, seriam esses cursos de formação e de geração de renda rápida. Eles têm características de ações afirmativas e são voltados, em grande parte, para medidas de compensação.
As políticas públicas não dependem só da gestão municipal, mas também de projetos do estado e no âmbito federal. Como observa as integrações dessas esferas de poder, além do envolvimento com sociedade civil, instituições de ensino, ONGs?
A política de promoção da igualdade racial é uma política de âmbito nacional. Existe uma integração entre o Estado, o município e a esfera federal por meio do Sistema Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir). Todo município pode aderir a esse sistema nacional. Ele funciona de maneira similar ao SUS, como uma política unificada.
Para que o município faça parte do Sinapir, é necessário ter um plano municipal, um conselho municipal e um órgão responsável pela Política de Igualdade Racial (PIR). Campos possui esses três requisitos, então o município fez uma adesão de modalidade básica ao sistema e está atualmente alinhado com a política pública em nível nacional.
É claro que existem outras formas de fortalecer essa política no âmbito municipal. Uma delas é o diálogo constante com os movimentos sociais e a sociedade civil organizada. As políticas de promoção da igualdade racial são políticas transversais, ou seja, se interligam com diversas outras secretarias. Dessa forma, o diálogo permanente com as necessidades reais da comunidade negra permite que essa política esteja sempre em movimento.
Quais os principais desafios para tua pasta como gestor e como analisa os resultados de ações nos últimos quatro anos?
O maior desafio que vejo em termos de política pública para a promoção da igualdade racial é transformar a Subsecretaria novamente em uma Secretaria. Esse retorno seria importante, pois já tivemos uma fundação com autarquia própria. Atualmente, fazemos um trabalho massivo com o objetivo de voltar a ser uma Secretaria Municipal, não apenas uma Subsecretaria. A política de promoção da igualdade racial é ampla e complexa, sendo uma política setorial. Permanecer como Subsecretaria nos limita em algumas questões; uma delas é a adesão plena ao Sistema Nacional, o que permitiria acessar todos os recursos federais. Por ser uma Subsecretaria, estamos restritos à modalidade básica, o que representa o principal desafio dessa pasta.
Nos últimos quatro anos, nossa atuação tem contado com o apoio do prefeito, que é muito simpático às causas das minorias sociais. Avançamos bastante nesse período. Embora haja espaço para mais avanços, conseguimos realizar muitas das metas que estabelecemos. Realizamos a reforma do prédio e implementamos cursos de geração de renda, entendendo que boa parte dos usuários dessa política são pessoas com baixa escolaridade, sendo a maioria mulheres em regime de monoparentalidade. Implementamos serviços focados no atendimento a essas pessoas.
Também lançamos o plano municipal de política de igualdade racial, que será oficializado no próximo dia 20. Além disso, criamos um canal de denúncias por telefone, que oferece atendimento com psicólogos, advogados, assistentes sociais, entre outros profissionais, realizando os encaminhamentos necessários para diferentes setores.
Nesses quatro anos, conseguimos avançar significativamente na política pública de promoção da igualdade racial, superando obstáculos que vinham se arrastando há bastante tempo. Ainda não alcançamos uma realização completa, pois a política pública depende de articulações com outras esferas. No entanto, acredito que atingimos cerca de 80% das metas que nos propusemos.
Quando falamos em Consciência Negra, o que a população brasileira formada em sua maioria por pretos, pardos, afrodescendentes precisa aprender ou refletir?
Quando falamos em consciência negra, seja no mês, na semana ou no dia da consciência negra, a pergunta precisa ser invertida: o que é necessário para que a população não negra reflita e faça sua parte? O problema do racismo e da promoção da igualdade racial, as mazelas enfrentadas pelas pessoas negras, não são problemas apenas da população negra, mas da sociedade como um todo.
Assim, o maior desafio em uma sociedade racista é garantir que o racista seja penalizado, que haja punição para quem comete o crime de racismo. Apesar das várias ações de letramento racial, programas educativos e produções audiovisuais que abordam o racismo de forma séria, ainda vivemos em uma sociedade que resiste às propostas de promoção da igualdade racial. Em Campos, por exemplo, observamos características cartesianas e provincianas, com práticas racistas ainda bastante arraigadas em um contexto conservador.
O que devemos fazer é intensificar as ações informativas e educativas, para que a comunidade não negra assuma a responsabilidade de não praticar o racismo e, caso persista, seja penalizada de acordo com a lei. A questão não é sobre o que a comunidade negra deve refletir, mas sobre o que a comunidade não negra deve fazer e refletir.
Nós, negros, já estamos em luta diária, enfrentando o racismo, a discriminação por nossa religião, por nossa cultura e por tantas outras questões. Agora, é fundamental fortalecer as ações de segurança pública e garantir que a legislação puna o racismo de maneira firme e efetiva.
Sobre racismo, identidade negra, valorização da cultura e religiões de matrizes africanas, o que o Brasil, mais especificamente a cidade de Campos, precisa compreender e conhecer?
A problemática das diversas discriminações que acometem a população negra não é um problema exclusivo dos negros, mas da sociedade como um todo. Preconceito, racismo e outras violações dos direitos das pessoas negras precisam ser compreendidos como questões que envolvem todos. Por mais de trezentos anos, o Brasil perpetua práticas discriminatórias, que ainda persistem, principalmente em cidades como Campos, onde o contexto é marcado por características provincianas.
Em Campos, as violações contra os direitos das pessoas negras ocorrem em diversos espaços. É possível perceber isso em lugares comuns, como supermercados, farmácias ou até mesmo no shopping, onde pessoas negras, especialmente aquelas de pele retinta, frequentemente são seguidas por seguranças ou alvo de olhares pejorativos. A transformação dessa realidade só ocorrerá com uma mudança efetiva na educação básica e superior, com o ensino da história, cultura e filosofia do povo africano. É preciso que os jovens aprendam que o povo africano e os negros brasileiros descendem de reis e rainhas, como outras civilizações, e não apenas de escravizados.
Gostaria que avaliasse a inclusão de pessoas negras no mercado de trabalho com mais qualificação, formação superior e a necessidade de aproveitamento de pessoas capacitadas na economia geral.
O Brasil tem uma dívida histórica com o povo negro, e essa dívida é refletida diretamente no mercado de trabalho, na educação, na política, em diversas áreas. Observamos que, no mercado de trabalho, a presença de pessoas negras, principalmente em posições de maior qualificação e formação, ainda é extremamente baixa. Apesar dos avanços que o país teve em relação às cotas e políticas de inclusão, o sistema educacional continua segregado e classista, dificultando o acesso à educação superior para as camadas mais pobres, que, em sua maioria, são negras.
Ao longo da última década, muitos esforços foram feitos para promover uma maior inclusão da população negra no mercado de trabalho, como a implementação de cotas raciais. Porém, ainda enfrentamos uma dificuldade estrutural muito grande em termos de capacitação e acesso das pessoas negras a postos de trabalho qualificados, especialmente em áreas de maior prestígio e melhores remunerações.
O que gostaria de mencionar ainda sobre ativismo negro?
O processo de transformação depende de um compromisso educativo contínuo. Na subsecretaria, promovemos cursos de formação e letramento racial durante todo o ano, mas a adesão da comunidade negra e, principalmente, dos professores da rede é ínfima. A maioria dos participantes são negros e ativistas do movimento social, o que reflete um entrave para o avanço dessa conscientização. A questão do racismo precisa extrapolar os círculos da população negra e envolver toda a sociedade.
Portanto, é papel do governo desenvolver campanhas e ações educativas constantes, que coloquem o racismo no centro das discussões diárias. É necessário tratar essa questão de forma séria e urgente, pois o racismo existe e afeta diretamente o dia a dia de muitas pessoas.
Se pensarmos na educação formal, vemos que a Constituição anterior relegava ao negro o acesso à educação somente após a abolição da escravatura, e ainda assim em horários pós-trabalho, como no caso da Educação de Jovens e Adultos (EJA). O negro foi excluído da educação durante os trezentos anos de escravidão, sem acesso à formação técnica ou acadêmica. Isso torna a questão da igualdade educacional um desafio imenso, porque, se estamos há trezentos anos em desvantagem, como esperar que a situação se resolva em um ou dois anos, ou até mesmo em dez anos? Para uma reparação plena, são necessárias políticas públicas eficazes, ações informativas e medidas de compensação para que se estabeleça uma equidade real.
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