×
Copyright 2024 - Desenvolvido por Hesea Tecnologia e Sistemas

Pessoas insistem em morar nas ruas, apesar dos abrigos públicos

Prefeitura de Campos disponibiliza 120 vagas em casas de acolhimentos, mas problemas persistem na cidade

Especial J3
Por Monique Vasconcelos
4 de agosto de 2024 - 0h01
Cartão postal|No Cais da Lapa uma família mora há 4 anos em barracos (Fotos: Silvana Rust)

A manhã estava fria, havia chovido na noite anterior. William estava sentado no chão e usava um pequeno e simples cobertor. Quem vê esse jovem, de 22 anos, com as mãos estendidas esperando receber uma moeda na calçada em um local próximo a um shopping na Avenida Pelinca, em Campos, não imagina o que ele já passou na vida.

No mês de julho, um levantamento divulgado pelo Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, da Universidade Federal de Minas Gerais (OBPopRua/POLOS-UFMG), revelou que 300.868 pessoas vivem atualmente em situação de rua em todo o Brasil. Em dezembro de 2023, esse total era de 242.756 pessoas. Em Campos, dados de 2022, no primeiro Censo sobre a população em situação de rua, elaborado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social (SMDHS), a Prefeitura identificou 114 pessoas vivendo nas ruas da cidade. Não há dados de 2023 e nem deste ano. No entanto, é visível o aumento do número de pessoas em situação de rua na área central, mesmo com oferta de abrigo pela Prefeitura.  As vagas seguem disponíveis, na mesma medida em que a população em situação de rua aumenta.

Invisíveis|Pessoas que vivem nas ruas costumam ser ignoradas no dia a dia

A equipe de reportagem do J3News conversou com William Souza da Silva, que vive em situação de rua há dois anos e meio, desde que perdeu a família para a Covid-19. “Primeiro, eu perdi minha mãe, depois eu perdi meu pai. E assim a minha vida virou o que? Virou tipo uma história”, desabafou com seu olhar doce.

Perder um familiar importante parece ser uma questão frequente para as pessoas irem para as ruas. Informalmente, conversamos também com outras pessoas que estão nas vias públicas depois da morte da mãe.

Então, a partir da perda dos pais, William foi morar nas ruas da Pelinca, onde é considerado querido por moradores e trabalhadores do bairro. Enquanto nossa equipe de reportagem estava conversando com William, ouviu alguns relatos de pessoas que passavam pelo local elogiando o rapaz, falando que ele é diferenciado e que, por isso, buscam sempre ajudá-lo. “Ele é abençoado”, disse uma senhora. “Todo mundo aqui gosta de mim. Eu peço dinheiro e a sociedade toda me ajuda também com feijão, arroz, açúcar, macarrão e, assim, eu vou cozinhando. Não é vergonha”, contou William.

No entanto, mesmo com tanta gente gostando de William, ele relata que sempre há alguém para demonstrar o preconceito. E lembrou de uma vez que um homem repreendeu uma mulher por dar dinheiro a ele, dizendo que ele iria comprar drogas, embora ele afirme não usar. “Mas, ela não deu o braço a torcer, disse que não queria saber o que eu iria fazer com o dinheiro”, conta.

O preconceito é comum a quem está em situação de rua. A equipe conversou com um senhor com deficiência física, que estava deitado na calçada, em frente a um prédio comercial, na Praça do Santíssimo Salvador, e se deparou com uma cena hostil. Um homem foi até ele e ordenou que saísse de lá dizendo que estava atrapalhando a passagem das pessoas. A pessoa em situação de rua, que não quis ser identificada, relatou que vive nas ruas desde que perdeu a mãe e que diariamente enfrenta falas como essas “as pessoas não me veem como ser humano. Eu já perdi a esperança”, desabafou.

Ao contrário desse idoso, William se mostra otimista. Mesmo com tantas coisas dando errado na vida, ele não perde a esperança de dias melhores. Espera, inclusive, conseguir um emprego em breve. “Pode ser como faxineiro, pode ser qualquer tipo de serviço. Não é vergonha limpar um banheiro. Depois vou formar minha família, ter esposa e filhos. Estou novo ainda, graças a Deus”. Ele ainda completa, embalado pela fé: “Meu sonho é ter uma casa. Um dia Deus vai me dar uma. Sempre oro por Nossa Senhora, Maria, mãe de Jesus, Nossa Senhora de Nazaré. Um dia eles vão me dar uma casa, e não vai demorar muito”, afirma.

Parceria|Ana e Vitor têm rotina nas ruas acompanhada por sua cachorrinha

Um abrigo na beira do rio
Quem vai ver a vista no Cais da Lapa se depara com uma estrutura de papelão no local. A montagem pode ser definida como um tradicional barraco. Lá, vivem Ana, o marido Vitor, o sobrinho Rafael e mais um amigo. Eles contam que estão ocupando a área há cerca de quatro anos por não terem outra opção de moradia. Ana Nobre é muito conhecida na cidade de Campos, costuma andar por toda a cidade em sua cadeira de rodas, vendendo balas. Vitor e Rafael atuam com reciclagem.

Ana conversou com nossa equipe de reportagem e falou das dificuldades. “Morar lá é difícil, é frio, muito assustador. Com rato, com bicho, mas agora a gente já se acostumou com isso. Quando tem chuva, a barraca molha toda”, desabafou Ana.

Ela nasceu em Campos, mas foi criada em Minas Gerais e voltou para a cidade natal com 12 anos. “Eu comecei a morar na rua lá em Minas, depois que eu perdi a minha mãe. Era muito judiada. Eu não andava, devido à doença que eu tenho nos ossos que me levou à cadeira de rodas”, relata.

Quem vê Ana pelas ruas de Campos, da Praça São Salvador ao Mercado Municipal vai perceber que ela sempre está acompanhada de suas cachorrinhas, Pandora e Pretinha, que, ela conta, são seus xodós. “Eu adoro. A Pandora veio para mim pequenininha. A Pretinha engravidou e eu arrumei donos para os cachorrinhos. Mas, dar pra alguém maltratar isso aí não”, disse.

Além da dificuldade com a moradia, há a questão da invisibilidade. Rafael, de 34 anos, contou que já está há um tempo sem carteira de identidade e que fez o cadastro para fazer a segunda via do documento na prefeitura, mas ainda não conseguiu. Ele reclama que a demora em ter o documento faz com que não consiga tomar vacinas, por exemplo. Rafael afirma ainda que tomou duas doses da vacina da Covid-19, mas, que quando foi tomar a terceira, já sem documento, foi impedido, apenas com a identidade. Ele tem apenas certidão de nascimento.

De acordo com a prefeitura, a retirada de documentação é feita através do encaminhamento para Defensoria Pública, Cartórios, Detran e Receita Federal. A documentação é providenciada por profissionais da secretaria de Desenvolvimento Humano e Social. Além disso, o programa Consultório de Rua (CR) promove vacinação para a população em situação de rua em abrigos e em pontos como a Praça do Santíssimo Salvador e a Rodoviária Roberto Silveira, no Centro, além de outros locais.

Abrigo da Prefeitura não é unanimidade
Em 2022, no primeiro Censo sobre a população em situação de rua em Campos, elaborado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social (SMDHS), a Prefeitura identificou 114 pessoas vivendo nas ruas da cidade. Do total de pessoas em situação de rua, 49 disseram que dormiram nas ruas, em casas ou em prédios abandonados. Já 42 pessoas disseram que utilizavam a rua como forma de trabalhar. Não foram disponibilizados dados de 2023 e nem deste ano.

A SMDHS realiza abordagens sociais feitas pelas equipes do Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua (Centro Pop) com o objetivo de encaminhar para os abrigos municipais. O município possui quatro abrigos para onde as pessoas são encaminhadas e atendidas, sendo eles: Manoel Cartucho, Casa de Passagem, Lar Cidadão e uma Organização da Sociedade Civil (OSC) cofinanciada pela SMDHS. Juntos, os abrigos têm 120 vagas. No entanto, nem todas as pessoas em situação de rua querem ir para esses locais por diversos motivos. E elas não são obrigadas a isso. A SMDHS oferece, ainda, orientações individuais e em grupos, além do encaminhamento a outros serviços socioassistenciais e demais políticas que contribuem para a construção da autonomia, inserção social e proteção de situações de violência.

 
O idoso com deficiência que conversamos na reportagem falou que prefere ficar nas ruas porque tem medo. Para ele, lá há “bandidos”, e “me sinto mais seguro nas ruas”. O mesmo disse William. “No abrigo tem droga e eu não uso droga”, afirmou.