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Chuva deixa rastros de destruição em Santo Eduardo

Moradores tentam recomeçar em meio ao caos e contabilizam os danos causados pela enxurrada

Especial J3
Por Clícia Cruz
31 de março de 2024 - 5h00

Clícia Cruz e Camilla Silva

Limpeza|Moradores separam o que restou de suas casas e ruas ficam tomadas por móveis danificados pela enxurrada (Fotos: Silvana Rust)

A casa é aquele lugar que nos aconchega. O local para onde se deseja voltar, para onde se deseja ir quando se está cansado, o local que testemunha toda a nossa trajetória de vida. É lá que ficam guardadas as recordações, as fotos, objetos que nos são caros, é lá que está o lugar onde seu filho deu os primeiros passos, é na casa que ficam guardados os documentos que pertenceram aos seus entes queridos, os objetos com valor sentimental. É lá que você se sente protegido. Quando uma catástrofe destrói esse lugar, não há outra saída, senão recomeçar. Em Santo Eduardo, distrito de Campos dos Goytacazes que foi assolado pelas últimas chuvas, as famílias buscam forças para o recomeço após perderem quase tudo, mas conseguirem preservar a vida.

Michelle|“Minha vida foi enterrada”

Michelle Eduardo Ofrante Mussel estava em Cabo Frio quando recebeu a notícia que a casa dela havia sido invadida pela enxurrada. A força da água chegou a arrancar o portão do imóvel. As recordações de uma vida foram destruídas. Em 2023, ela perdeu a mãe e a tia, e pegou todos os móveis e objetos das duas e colocou na casa, mas a água destruiu quase tudo. “Eu saí de Santo Eduardo deixando uma casa bonita, montada, e voltei tendo só a malinha que eu estava carregando. A sensação que eu tenho é que minha vida foi enterrada aqui, eu tenho a sensação que eu tenho que ir embora, que Santo Eduardo acabou pra mim. É muita tristeza, além das perdas que eu passei em 2023, agora perco também as recordações. Estamos trabalhando, tentando limpar tudo, tem hora que a gente desanima, chora, para, e depois volta a tentar limpar tudo”, lamenta Michelle.

Jeane Aparecida Pessanha disse que nunca vai esquecer o momento que precisou fugir da força da água, levando os filhos pequenos: “A gente estava dormindo, teve uma vizinha que o valão passa nos fundos da casa dela e quando a água foi subindo rápido ela veio alertando, e quando ela bateu na minha porta a água já estava na calçada. Só deu tempo de pegar meus dois filhos e sair correndo, quando eu andei um pouco e olhei pra trás a água já estava no portão, aí não tinha mais o que fazer, ali eu vi que perdi tudo. Agora, é pedir força a Deus, contar com a ajuda de quem puder ajudar e trabalhar pra colocar tudo de volta no lugar”, conta resiliente.

Juliano Ferreira tem um restaurante e no dia seguinte à cheia ainda não conseguia fazer a limpeza do local, devido à falta d’água. “Primeiro é difícil a gente acreditar no que aconteceu aqui, porque é inédito, a ficha não cai, o nível da água foi muito alto, foi assustador, mas a gente está de pé, correndo atrás, se esforçando, estamos com uma dificuldade imensa ainda, que é o abastecimento de água, e isso está complicando mais ainda, deixando a gente de mãos atadas, relata o comerciante. 

Caos|Prefeitura enviou equipes e maquinário para a limpeza do distrito

A água atingiu mais de 2,5 metros em alguns pontos do distrito, um nível que nunca havia chegado. Relatos de antigos moradores, contam que na cheia de 1975, a maior que consta nos registros, a água chegou aos bancos da praça principal. Dessa vez, os bancos foram arrancados com a força da água. Nunca havia sido registrada uma cheia como essa na localidade.

Casas, comércios, ruas, praça, todos os setores do distrito foram afetados e a comunidade praticamente inteira está sofrendo os efeitos da cheia. Mesmo para aqueles que ainda dispõem de algum recurso financeiro, não há onde comprar alimentos, produtos de limpeza, medicamentos e produtos de higiene pessoal. A água destruiu quase tudo. As famílias têm conseguido se manter com doações que chegam de várias partes da cidade, que estão sendo recolhidas por vários setores da sociedade e destinadas à Prefeitura de Campos, que faz a distribuição. De acordo com o último balanço divulgado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social, há 124 pessoas desabrigadas e 116 desalojadas no distrito.

Ação|Moradores se unem na tentativa de recuperar e limpar o que restou

Estado de emergência
O prefeito Wladimir Garotinho decretou na última terça-feira (26), situação de emergência nas áreas do município que foram atingidas pelas intensas chuvas. A situação, enquadrada em Desastre de Nível II, consta do Decreto nº 69, publicado em suplemento do Diário Oficial. De acordo com o decreto, o fenômeno atuou de forma muito intensa em diversas regiões do município na madrugada de sábado. Somente na região Norte do município, em um intervalo de oito horas, foi verificado um acumulado pluviométrico esperado para cerca de dois meses, sendo aferido um volume de 236 mm de chuva na estação de Morro do Coco. Para o decreto ainda foi considerado o registro de chuvas intensas na Bacia do Rio Itabapoana, que delimita o Norte de Campos e que ocasionou inundação.

Chuvas superam média histórica para o mês de março
Muitos moradores de Santo Eduardo ainda não entendem como a água atingiu casas que não ficam na parte baixa da localidade. Eles contam que a maior enchente que tiveram notícia ocorreu em 1975. Na época, a água atingiu a altura dos bancos da praça. Na enxurrada do último fim de semana, o nível chegou ao teto de pontos de ônibus instalados no local. Alguns bancos de pedra ficaram de cabeça para baixo com a força da correnteza.

Os dados da estação meteorológica mais próxima ao local indicam que choveu 270 mm em 24 horas na região. O pesquisador doutor em Engenharia Agrícola e professor de pós-graduação em Modelagem e Tecnologia para Meio Ambiente Aplicadas em Recursos Hídricos (AMBHidro) do Instituto Federal Fluminense, em Campos, Vicente Oliveira, explica que esse valor é bastante alto, superando inclusive a média histórica do mês de março. “Quando cai muita quantidade de água assim, concentrada num período de tempo curto, há o comprometimento do escoamento das águas e ocorre a elevação do nível dos rios. Os sistemas de drenagem não estão preparados normalmente para uma intensidade de chuva tão alta assim, então, acaba causando inundações. Logicamente, à medida que o rio vai escoando, as águas vão baixando, mas o prejuízo acontece”, explicou.

O pesquisador ressalta, no entanto, o papel que as alterações no ambiente, produzidas pela ocupação humana, causam no comportamento da água. “Tudo é agravado com a mudança da cobertura vegetal, substituição da mata nativa e ciliar por pastagem, por culturas, como café. Isso acaba propiciando também a redução da infiltração da água no solo e aumentando o escoamento superficial. Então, quando tem uma grande chuva assim, acaba o escoamento no rio sendo maior do que aquele que aconteceria se houvesse vegetação na bacia hidrográfica”, explicou Vicente Oliveira. Ele destaca, ainda, que é preciso analisar o efeito que as diversas represas que existem na região causam em momentos de grande volume de precipitação.

Faxina|Lama e entulho são retirados de dentro de casa

O recomeço
As famílias que perderam bens materiais estão sendo cadastradas pela Prefeitura de Campos para serem atendidas por programas sociais. O Governo do Estado também vai incluir as famílias que se enquadram nos critérios no Cartão Recomeçar, um benefício no valor de R$ 3 mil, em parcela única, concedido à população de baixa renda atingida por desastres naturais decorrentes de enchentes, deslizamentos, desabamentos e incêndios. O benefício pode ser utilizado para compra de materiais de construção, mobiliário e eletrodoméstico. 

A Prefeitura de Campos é a responsável pelo cadastramento das famílias e informou que a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social já iniciou o cadastro e que as equipes ainda estão em campo, realizando a busca ativa. A Prefeitura também informou que a solicitação do Cartão Recomeçar será feita esta semana, após  a confirmação de todas as famílias afetadas.

Quem deseja fazer doações às famílias de Santo Eduardo pode levar água, alimentos não perecíveis e produtos de higiene e limpeza à sede da Prefeitura de Campos, onde estão sendo concentradas as doações para posteriormente serem distribuídas.

Abastecimento de água
Com relação à queixa dos moradores sobre a escassez de água, a concessionária Águas do Paraíba informou que, após a retomada da operação na Estação de Tratamento de Água (ETA) Santo Eduardo, que também foi atingida pelas fortes chuvas, foram identificados diversos danos na rede de abastecimento, causando oscilações na distribuição. A concessionária deslocou equipes para atuarem intensivamente na localidade e solucionarem o problema o mais rápido possível.

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