Carlos Rezende é biólogo marinho, com especialização em oceanografia química, além de professor e pesquisador da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Ele é um dos analistas entrevistados para a reportagem especial “Mar avança e preocupa praias da Região Norte” (leia aqui). Além da erosão da costa marinha em cidades como Campos dos Goytacazes, Macaé, São João da Barra, há também preocupações com outras áreas litorâneas do estado do Rio de Janeiro, como Cabo Frio e Rio das Ostras. O cientista destaca, ainda, os problemas que envolvem a erosão do Rio Paraíba do Sul, e que requerem uma série de ações governamentais. Isto tem ocorrido suficientemente, de acordo com sua avaliação.
Como analisa a situação da costa regional que tem registrado frequente avanço do mar e erosão? Quais as principais causas?
Esta é uma pergunta que abrange diversos casos que demandariam mais detalhes, pois cada região possui suas especificidades. Estamos vivendo em um período definido como Antropoceno, no qual as atividades humanas são responsáveis por transformações planetárias significativas. As regiões costeiras merecem uma atenção especial devido à sua história de colonização e atividades econômicas. A interface entre o continente e o oceano enfrenta uma pressão considerável devido à ocupação humana, uma vez que 21% e 40% da população mundial vivem respectivamente a 30 km e 100 km da costa. Em resumo, as principais causas incluem urbanização com ocupação irregular, agricultura, aquicultura, portos e controle hidrológico das bacias de drenagem para usos múltiplos. Esses são os principais fatores que desestabilizam o equilíbrio dinâmico da região costeira, desenvolvido ao longo do Holoceno (aproximadamente 11 mil anos), e agravado pelo aumento do aquecimento global e do nível do mar.
O fenômeno mais conhecido está em Atafona, São João da Barra, mas a reportagem tem registros da erosão crescente em Farol de São Thomé, praias de São Francisco de Itabapoana, Macaé e Rio das Ostras, entre outros, nas últimas décadas. Até que ponto as alterações climáticas e ações humanas agem nesses locais?
Vou me deter principalmente no estuário do Rio Paraíba do Sul, pois é um processo que já se alonga por décadas e nada foi feito pelo Município, Estado ou União. Reconheço que é um rio Federal com um grande Comitê criado em 1997 (CEIVAP – Comitê de Integração da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul) e um Comitê criado em 2009 (Comitê de Bacia da Região Hidrográfica do Baixo Paraíba do Sul e Itabapoana), mas efetivamente esta região costeira tem sido sacrificada pelas intervenções realizadas na porção média e superior da Bacia. Então, precisamos que estes comitês também se posicionem com mais força para termos ações concretas sobre os estuários do Rio Paraíba do Sul e Rio Itabapoana. Se me pedisse para ranquear os principais responsáveis, considero que o controle da vazão, com uma redução ao longo do tempo de aproximadamente 50% para o uso na bacia, iniciou estes eventos erosivos na costa, onde vários quarteirões desapareceram, e depois as alterações climáticas vieram para aprofundar este processo, gerando eventos extremos de grande intensidade.
O município de Macaé apresenta um elevado nível de vulnerabilidade devido a um rápido processo de urbanização motivado pelas atividades de prospecção de petróleo. Um fenômeno de urbanização semelhante é observado no município de Cabo Frio, onde uma combinação de relevos mais elevados e planícies costeiras baixas aumenta a probabilidade de desastres naturais, como vemos aqui na região.
A região entre Cabo Frio e a Baía de Guanabara, conhecida como Região dos Lagos, é constituída por serras, promontórios rochosos e sistemas de lagoas costeiras. Nas últimas décadas, a Região dos Lagos tem estado sujeita a pressões de urbanização e turismo. A região está exposta a fortes ondas e tempestades do quadrante oeste-sul, o que explica parcialmente a erosão costeira e as inundações observadas na região. As praias oceânicas da região adjacente à Baía de Guanabara também estão expostas às tempestades do quadrante oeste-sul. Já o litoral interno da baía está sujeito a inundações e indiscutivelmente é a área mais vulnerável do estado devido à sua baixa topografia e à alta densidade populacional da região metropolitana do Rio de Janeiro.
No sul do estado, as Baías de Sepetiba e de Ilha Grande abrigam áreas residenciais abastadas e destinos turísticos famosos (ex.: Angra dos Reis e Paraty) ao longo da chamada Costa Verde. Nesta região também existem três usinas nucleares, base de construção de submarinos nucleares, marinas e portos. Diferente do restante do estado, a Costa Verde é estreita e constituída por áreas baixas. Portanto, consideravelmente vulnerável a eventos naturais relacionados às alterações climáticas e ao aumento do nível do mar.
As cidades brasileiras concentram grande população na faixa litorânea do país. Como observa sobre esse tipo de urbanização e ameaças que as cidades correm com o avanço do mar?
Esta pergunta está associada à questão anterior e vamos continuar a abordagem. Segundo o IPCC, o aumento do nível do mar representa riscos consideráveis para mais de 680 milhões de pessoas, esse número deve ter aumentado, que vivem em zonas costeiras baixas em todo o mundo, uma vez que intensifica a frequência, a amplitude e o impacto das inundações, da intrusão de água salina e da erosão costeira.
Em 2022, em colaboração com alguns colegas, escrevemos um artigo com o objetivo de avaliar como a população percebe a necessidade de adaptações na região costeira diante da realidade do aumento do nível do mar e algumas informações colocarei ao longo das perguntas. As consequências são significativas, mas aparentemente as pessoas ainda precisam compreender melhor os riscos a que estão expostas. O Brasil possui um extenso litoral, com diversas cidades localizadas em áreas vulneráveis, conforme mencionado nas perguntas anteriores. No caso do estado do Rio de Janeiro, cerca de 11 milhões de pessoas estão em risco, e nas 12 maiores cidades costeiras brasileiras, mais de 19 milhões estão em situação vulnerável devido ao aumento do nível do mar. Portanto, essa questão levanta uma discussão importante, especialmente neste momento em que tratamos das próximas eleições que ocorrerão este ano e nunca incluímos nos planos de governo metas claras para lidar com as questões relacionadas às adaptações das cidades diante das mudanças climáticas.
A construção de barreiras ou quebra-mares é capaz de frear ou minimizar o problema? Que obras seriam necessárias para evitar mais danos em Atafona e cidades vizinhas, por exemplo?
Entre 2017 e 2018, participei ativamente de um grupo criado pela Comissão Interministerial para Recursos do Mar, cujo propósito era a elaboração de um Guia de Diretrizes de Prevenção e Proteção à Erosão Costeira (Disponível em https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/patrimonio-da-uniao/destinacao-de-imoveis/arquivos/2018/guia-de-diretrizes-de-prevencao-e-protecao-a-erosao-costeira.pdf/view). Ao analisar este guia, é possível constatar a diversidade de técnicas de contenção, como estruturas rígidas, que embora possam resolver problemas localizados, podem gerar complicações em áreas adjacentes. Por isso, destaco a importância crucial da integração entre os municípios para minimizar os impactos nas regiões próximas.
Uma das abordagens adotadas para lidar com a erosão costeira é o aumento da linha de costa através do reabastecimento das praias com areia. No entanto, é importante salientar que não existe uma solução mágica para este desafio assim como uma única solução, não há uma receita única. Portanto, todas as intervenções devem ser realizadas com cautela e baseada em conhecimento científico. Toda intervenção requer acompanhamento cuidadoso por parte de um grupo multidisciplinar, e as intervenções devem ser consideradas como temporárias, dada a complexidade do problema e a dinâmica do ambiente costeiro.
Como observa as ações de governos locais, estadual e federal, além de órgãos ambientais nessa questão que envolve avanço do mar ou erosão costeira?
A situação de governança no Brasil, de uma maneira geral, é rica em propostas desde a criação do Sistema Nacional de Meio Ambiente na década de 1980 e passando pela famosa Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, também conhecida como Eco-92. Se desde este período tivéssemos a prática de políticas públicas sérias, muitos dos problemas que observamos atualmente, não estariam sendo presenciados. Quanto aos recursos costeiros em nível estadual e municipal, pode e deve ser considerado o planejamento e gestão com certa autonomia, mas entendo sob coordenação Federal e evitando decisões de cima para baixo. O Plano Nacional de Gestão Costeira (Lei 7.661-1988) é a base legal que fornece orientação para o uso racional dos recursos costeiros e capacita os governos estaduais e municipais para projetar e implementar suas próprias políticas de gestão costeira.
Em particular, o estado do Rio de Janeiro não tem sido capaz de implementar integralmente as diretrizes fornecidas pelo Plano Nacional de Gestão Costeira, tornando difícil qualquer tentativa de promover formas integradas de governo para enfrentar os crescentes desafios colocados pelo rápido crescimento urbano e intensa atividade industrial nas áreas costeiras. A vulnerabilidade do Estado do Rio de Janeiro aos desafios do aumento do nível do mar, das mudanças climáticas e da governança costeira é relevante e deve ser considerada nas próximas eleições nos municípios que possuem interface continente – oceano.
As pesquisas e relatórios provenientes das universidades têm contribuído de que forma para refletir e combater o problema no litoral fluminense?
Definitivamente, há uma grande distância entre o conhecimento gerado pelas instituições que realizam pesquisas sérias e as políticas públicas, obviamente com pouquíssimas exceções. Um exemplo disso é um estudo que conduzimos na Lagoa de Cima, envolvendo diversos profissionais e áreas de conhecimento, com o objetivo de desenvolver um Plano de Manejo para a região. Infelizmente, apesar das expectativas, nada foi feito ao longo de várias gestões até o presente momento. A região em questão apresenta uma paisagem fantástica para o ecoturismo, porém tem sofrido degradação. As lagoas costeiras e urbanas, por exemplo, seriam excelentes locais para atividades recreativas, mas a qualidade de suas águas é insatisfatória. Além disso, a área do Farol de São Thomé deveria ser reconhecida e tratada como um sítio RAMSAR, que são Zonas Úmidas de elevado interesse ecológico e rica biodiversidade. Este é apenas um dos muitos exemplos que poderiam contribuir significativamente para a preservação dessas regiões costeiras.
Gostaria de destacar medidas de prevenção e combate que podem auxiliar nessa questão?
Como disse acima, hoje o uso mais frequente é realimentar a região praial com areias, mas há necessidade de estudo e acompanhamento ao longo do tempo.
Como observa o futuro das populações que vivem próximas ao mar e estão envolvidas diretamente com mudanças climáticas e erosão costeira?
Se utilizarmos o Caso de Atafona como exemplo da Pior Hipótese, podemos dizer que todos estão arriscando suas vidas ao ocuparem faixas costeiras que tenham vulnerabilidades devidamente apontadas por vários estudos realizados ao longo da costa brasileira.
Trata-se de um fenômeno irreversível a questão do avanço do mar no Brasil e no mundo? O combate ao aquecimento global “resolveria” a questão?
Na realidade, a reversibilidade natural deste processo possui uma probabilidade muito baixa ou até impossível, pois, no caso da nossa região, depende de várias ações no continente, assim como intervenções na região costeira. O aquecimento global e o aumento do nível do mar caminham conjuntamente, e não observamos uma mudança expressiva em políticas públicas, tanto no Brasil quanto nos países com maior emissão de gases poluentes, para a redução do aquecimento global e signatários de todos os acordos. Aliás, este é um dos grandes problemas, pois os países mandam seus representantes, aprovam os acordos e quando retornam aos seus países não implementam absolutamente nada ou quase nada.
Estamos muito próximos da temperatura limite de 1,5º C, que foi usada objetivamente como uma bandeira desde o Acordo de Paris em 2015, mas agora foi transferida para 2027. Concluo dizendo que hoje o caminho é efetivar as políticas e práticas que estabelecemos, mas não podemos descuidar do fato de que esta região é dinâmica e precisa ser devidamente acompanhada em uma escala temporal e espacial.
Comente algo que não tenha perguntado e considere indispensável citar para refletir este tema.
Na realidade, sugiro que os municípios da região que recebem royalties e enfrentam desafios decorrentes desses processos nas áreas costeiras, realizem um esforço coletivo com profissionais qualificados para abordar os temas pertinentes a cada região. Embora estejamos lidando com um litoral contínuo, é crucial compreender que existem especificidades distintas em cada área.
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