Lançado nesta quarta-feira (10), na sede do Supremo Tribunal Federal (STF), o Anuário da Justiça Brasil 2023 aponta, pelo quarto ano consecutivo, o Rio de Janeiro como a unidade federativa do Brasil que mais teve a constitucionalidade de suas leis questionada junto à Suprema Corte, atrás apenas da própria União. Ao longo do ano passado, cujos dados consolidados servem de referência para a produção do documento, o Estado teve 19 normas julgadas. Deste total, 14 foram retiradas do ordenamento jurídico no todo ou em parte. Os números representam uma “taxa de inconstitucionalidade” de 74%. Muitos destes dispositivos afetam setores específicos da economia ou da sociedade. Mas, é possível que, em um futuro próximo, leis de alcance mais amplo, como a que regulamenta a cobrança de Taxa de Incêndio em território fluminense, entrem também na mira das Cortes Superiores e figurem em novas edições da publicação.
Entre as normas reconhecidas como inconstitucionais pelo STF em 2022 e que constam do Anuário da Justiça Brasil 2023 estão leis diretamente relacionadas à vida dos consumidores do Estado, como a que autorizava planos de saúde a limitar consultas e sessões para tratamento de pessoas com deficiência.
Outras, editadas durante a pandemia do novo coronavírus, como a que permitia a matrícula de alunos inadimplentes em faculdades e a que impedia a cobrança de multa por quebra de fidelidade por parte de empresas de telefonia, internet e serviços semelhantes, foram invalidadas pelos ministros por invadirem competências da União.
O STF entendeu, ainda, que lei estadual não pode criar sanções processuais para litigância de má-fé diferentes daquelas previstas na legislação federal. Com isso, outra norma do Rio de Janeiro foi julgada inconstitucional.
De acordo com o advogado e ex-procurador-geral do município de Campos, José Paes Neto, o alto número de leis que são objeto de questionamento no STF pode estar relacionado à “extensa produção” da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). “Apenas em 2022 foram mais de 1,2 mil projetos de lei apresentados e 399 novas leis aprovadas. O populismo de parte das leis aprovadas, em especial na área de defesa do consumidor, também justifica a quantidade expressiva de leis declaradas inconstitucionais. Em algumas situações, reconheceu-se que o Estado invadiu a competência da União para legislar sobre a matéria”, analisa.
Indicado pelo presidente da 12ª seção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-Campos), Filipe Estefan, para comentar os dados do Anuário da Justiça Brasil 2023 em nome da entidade, o também advogado e professor Thiago José Sá Freitas diz que os números revelam “o despreparo do nosso legislador estadual”. “Não sou daqueles que defendem que a Casa Legislativa deve ser composta apenas por intelectuais, letrados ou juristas. Isso excluiria a representatividade das camadas sociais menos privilegiadas. Sabe-se que os parlamentares podem contar com uma boa assessoria, mas, pelos números, a Alerj vem pecando nesse quesito”, avalia.
Questionada pela reportagem, a Alerj minimizou, em nota, os dados do Anuário da Justiça Brasil 2023 e ressalta o caráter “vanguardista” da produção legislativa da Casa: “O Estado do Rio de Janeiro tem como característica a inovação legislativa, ocupando posição de vanguarda no país. O Estado do Rio de Janeiro, quando editou sua Constituição em 5 de outubro de 1989, sofreu inúmeras críticas por supostas inconstitucionalidades. Depois, a Constituição Federal foi alterada e o Supremo Tribunal Federal mudou seu entendimento para, por exemplo: 1°) proibir o nepotismo, inserido na Constituição estadual antes do verbete n° 13 da Súmula Vinculante; 2°) admitir a Polícia Penal, prevista na Constituição estadual desde 1989; 3°) garantir o direito à nomeação de candidatos aprovados dentro do número de vagas previsto em edital de concurso público”.
O Poder Legislativo Estadual alega, ainda, que variações na jurisprudência das Cortes Superiores são “frequentes” e que uma lei rejeitada como inconstitucional pode ser vista de outra forma no futuro. “O fato de várias leis fluminenses serem declaradas inconstitucionais demonstra a atuação firme de seus Poderes na defesa do interesse do próprio Estado. Atualmente, são tão frequentes as variações da jurisprudência dos Tribunais que a declaração de inconstitucionalidade de hoje, muitas vezes, significa a constitucionalidade de amanhã”, finaliza.
Setor produtivo de olho no ambiente jurídico do Estado
Fernando Loureiro, presidente da Associação Comercial e Industrial de Campos (Acic), diz que a possibilidade de leis estaduais serem posteriormente consideradas inconstitucionais traz insegurança jurídica para o Rio e pode prejudicar o ambiente de negócios.
“Se normas são alteradas ou consideradas inconstitucionais, isso prejudica muito todo o investimento que algumas empresas poderiam vir a fazer dentro do Estado do Rio de Janeiro. Cria insegurança jurídica, porque os investimentos de médios e grandes negócios são pensados em médio, longo e longuíssimo prazos. Se, lá na frente, as regras do jogo podem ser mudadas, isso afeta diretamente a implementação desses planos e faz com que nossa economia fique fragilizada”, garante Loureiro.
O presidente da Câmara dos Dirigentes Lojistas (CDL) de Campos, Edvar de Freitas Chagas Júnior, concorda que a eventual inconstitucionalidade de leis que afetem o setor produtivo pode intervir no processo de recuperação da economia do Rio de Janeiro.
“Estamos acompanhando essa questão, mas ainda não conhecemos as leis estaduais que estão sendo consideradas inconstitucionais. Posso dizer que, no âmbito do setor produtivo, em decorrência da chamada ‘guerra fiscal’, foram aprovadas leis para fortalecer a economia do Rio, que, frisamos, está em um duro processo de recuperação. O que esperamos é que, com a reforma fiscal, essa guerra de tributo entre os estados termine e que o ambiente econômico fluminense melhore”, opina Edvar.
A 19ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ) reconheceu a inconstitucionalidade da Taxa de Incêndio em ação movida pelo advogado tributarista Carlos Alexandre de Azevedo. Na ocasião, ele explicou que o STF vem firmando jurisprudência no sentido de entender como inconstitucional o financiamento de serviços de segurança pública prestados pelo Corpo de Bombeiros por meio de taxa.
“Serviços de segurança pública, como os prestados pelo Corpo de Bombeiros Militar, são gerais, não específicos e indivisíveis. Portanto, não podem ser remunerados com taxa, mas bancados apenas por meio de impostos. Assim já decidiu o STF nos casos de outras duas leis estaduais que não a do Rio de Janeiro. Mas, por se tratar do mesmo tipo de serviço, os precedentes serviram de base para que a gente conseguisse essa primeira decisão no âmbito do TJ-RJ desobrigando o pagamento”, disse.
A ação está em fase de recurso e a decisão beneficia apenas o cliente de Carlos Alexandre. “Para se obter uma decisão que favoreça a todos, teria que ser uma ação direta proposta no STF, ou uma ação direta proposta junto ao Órgão Especial do Tribunal de Justiça”, afirmou.
Apesar do entendimento do STF, a Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro (PGE-RJ) nega que haja irregularidade na cobrança da Taxa de Incêndio fluminense.