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Tratamento precoce para Covid-19 é prescrito por médico em Travessão

Médicos têm autonomia para prescrever "kit Covid", desde que com consentimento dos pacientes, mas órgãos de Saúde não recomendam

Tudo sobre coronavírus
Por Ocinei Trindade
11 de julho de 2021 - 0h01
Medicação é prescrita na UPH de Travessão (Foto: Divulgação)

Autoridades médicas, cientistas, a Organização Mundial de Saúde e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Brasil reconhecem que somente a vacina pode ajudar a combater a Covid-19. No entanto, ainda há médicos que adotam o “tratamento precoce” ou o chamado “Kit Covid”. Este é o caso do médico Guilherme Rangel, atual diretor da Unidade Pré-Hospitalar de Travessão, em Campos dos Goytacazes. Várias receitas assinadas por ele foram distribuídas a pacientes. A combinação de medicamentos como cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina, utilizados por alguns profissionais no início da pandemia, já teve sua ineficácia comprovada.

Guilherme Rangel, diretor da Unidade Pré-Hospitalar de Travessão (Foto: Reprodução/Facebook)

Aos 68 anos, Guilherme Rangel tem 43 de profissão. Apesar de não existirem evidências científicas sobre o tratamento precoce, o médico prescreve medicações que, segundo ele, funcionam. Em junho, o clínico-geral de Travessão relatou o aumento de casos suspeitos de Covid em Travessão nos dois meses anteriores.

“Eu adquiri Covid-19. Este protocolo é meu. Tenho autonomia e assumo a responsabilidade. Tenho gratidão por salvar vidas. Não tenho dúvida de que funciona a combinação de remédios, pois há relatos e estudos em vários países. Tenho coragem de fazer isso por sã consciência. Sou um médico do SUS, onde a realidade é dura para tratar pacientes, sobretudo dessa doença”, comenta.

Não se sabe exatamente quantas receitas com o “tratamento precoce” foram prescritas pelo médico, mas cogita-se em algumas centenas. Sem querer se identificar, uma moradora de Travessão diz que tomou as medicações indicadas pelo profissional. “Ele é uma ótima pessoa, excelente clínico geral. Não pretendo me vacinar, pois os remédios já me garantem proteção. Não acredito na vacina”, conta a mulher. Guilherme também não se vacinou contra a Covid-19.

“Não quero me vacinar. Não tenho segurança na eficácia dessa vacina desenvolvida em tão pouco tempo. Meus pacientes são livres para se vacinarem se quiserem. Defendo quem queira, mas eu decidi não me vacinar”, diz o médico.

A professora Shirley Beatriz Oliveira é moradora de Travessão. Em dezembro de 2020, ela achou que estava com sintomas da Covid-19. Foi ao hospital particular. Foram receitados os medicamentos Azitromicina, Ivermectina, Vitamina C.

“Sou contra essas combinações, mas estava tão apavorada que tomei por sete dias. Fiz o exame para saber se estava infectada, mas testou negativo. Em março de 2021, novamente tive os sintomas da doença. Senti dor na garganta, dor na vista. Fiz um teste rápido em Travessão. Depois voltei ao hospital particular, fiz tomografia, exames e deu positivo. Me deram azitromicina, dipirona e o remédio para verme, ivermectina, mas não tomei”.

Shirley contou que teve sequelas após a Covid-19. “Fiquei com a pressão arterial muito alta. A doença mexeu com os rins, sinto muita dor de cabeça e fiquei surda por um período”. Segundo ela, em Travessão tem havido muitos casos de Covid. “Conheço muita gente que, mesmo sem sintomas, tomou ivermectina e cloroquina. O médico da UPH até manda receita para as pessoas, se um paciente pede. Acho que muitas têm esclarecimento sobre a ineficácia, porém, outras preferem ouvir o médico”.

A pandemia de Covid-19, reconhecida pela Organização Mundial de Saúde no início de 2020, já matou mais de 530 mil pessoas só no Brasil até o momento. Para o médico Nathan Kamliot, ser a favor do tratamento precoce não tem sentido.

“A autonomia do médico existe, mas há limites. Sintomas leves de gripe e até mesmo de Covid, recomenda-se repouso, hidratação, alimentação. No máximo, uso de paracetamol e dipirona em casos de febre. Não tem por que usar medicamentos desnecessários ou medidas farmacológicas. É frequente pessoas falarem sobre tratamento preventivo, mesmo com ineficácia comprovada. Há efeitos secundários dessas medicações. O fígado pode ser atacado por ivermectina multiplicada. A cortisona só pode ser usada em casos muito graves de pessoas internadas. Essa ‘falsa segurança’ que esses medicamentos dão levam muitas pessoas a andarem sem máscara e aglomerarem”, avalia.

Custos
Bancar o “kit Covid” não sai barato. De acordo com uma das receitas prescritas por Guilherme Rangel, o valor dos medicamentos se aproxima de R$300. Questionado sobre o custo dos remédios, o médico disse que se trata de um investimento em saúde. “Muitos não têm acesso a serviço de excelência ou plano particular. Esta é a realidade da maioria da população de Campos e do país”, considera.

Divergências médicas
Em plena da CPI da Covid no Senado Federal, onde são apurados supostos crimes de negligência do governo na condução de enfrentamento da pandemia, alguns médicos renomados defenderam em depoimento o tratamento precoce. É o caso da oncologista Nise Yamaguchi, e da atual secretária do Ministério da Saúde, a médica Mayra Pinheiro, chamada de “Capitã Cloroquina”. O infectologista Nélio Artiles lamenta o posicionamento de alguns colegas da área.

Receita prescrita pelo médico de Travessão(Foto: Divulgação)

“Teoricamente seriam formados através da ciência, mas desconhecem completamente o que se chama evidência científica, metodologias científicas. São profissionais que em vez de ato médico parecem fazer curandeirismo. Não há dúvidas. Já existe evidência de que não funciona. O Brasil está atrasado em muitos meses discutindo ainda cloroquina”, comenta.

Nélio fala sobre o uso da ivermectina indicada para a verminose. “A ivermectina é um absurdo. O único trabalho que mostrou alguma eficácia foi celular, de uma célula que nem era humana. É preciso uma dose muito maior do remédio para ter algum efeito. Ou seja, não previne nem trata. Se a gente pegar todo mundo que está no CTI grave, infelizmente, grande parte desses pacientes usou essas drogas. Eu sou a favor de que haja tratamento precoce, mas quando houver medicação que possa se fazer”, defende.

Segundo o infectologista, a melhor prevenção é se alimentar bem, fazer atividade física com segurança, fazer uma boa hidratação, evitar cigarro e beber em excesso. “Isto é uma prevenção de qualquer doença, inclusive Covid. A vacina tem uma importância fundamental com duas doses para que possa diminuir a exposição desse vírus no ambiente. Infelizmente há negacionistas que não acreditam na ciência, que não acham importante a máscara “, afirma.

Kit Covid não tem eficácia comprovada (Foto: Divulgação)

Sindicato e Prefeitura
A reportagem ouviu a Prefeitura e o Sindicato dos Médicos de Campos (Simec) sobre a conduta do médico Guilherme Rangel ao receitar medicamentos no chamado “tratamento precoce” contra a Covid na UPH de Travessão.

Por meio de nota, a Secretaria de Saúde informa que “o Conselho Federal de Medicina no Parecer nº 4/2020 deliberou que é decisão do médico assistente realizar o tratamento que julgar adequado, desde que com a concordância do paciente infectado, elucidando que não existe benefício comprovado no tratamento farmacológico dessa doença. Respeita-se a autonomia do médico na ponta de tratar, como julgar tratar seu paciente, assim como a autonomia do paciente em querer ou não ser tratado pela forma proposta. O município reforça que não estabelece nenhum protocolo de tratamento para a Covid-19 por ausência de recomendação do Ministério da Saúde”.

O Simec, também por meio de nota, informou que “defende que nenhuma medicação tem eficácia comprovada na prevenção da Covid-19 até o momento. Por esse motivo, opõe-se à prescrição de medicamentos sem comprovação científica de serventia no tratamento precoce do coronavírus. O sindicato considera que a prescrição desses medicamentos, de modo antecipado, pode vir a prejudicar os pacientes, por efeitos adversos decorrentes do uso, e também o sistema de saúde”, conclui.