A delegada Juliana Oliveira assumiu no mês de março um novo desafio: estar à frente da Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher (Deam), em Campos dos Goytacazes. O município registra altos índices de violência contra a mulher e o trabalho da Deam é, atualmente, o principal aliado na luta contra esse tipo de crime. Nos últimos cinco anos, de acordo com dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), houve um aumento de 33% nos casos de violência contra a mulher, somando os casos de violência física, moral, patrimonial, psicológica e sexual. Visando reduzir esses números, Juliana chega à Deam com novo fôlego e motivada pela causa da proteção. Ela já está implantando novos procedimentos e pretende expandir cada vez mais os canais de comunicação com a população a fim de fazer o trabalho de conscientização e também divulgar amplamente os canais de denúncia.
Conte um pouco da sua trajetória até chegar à Deam.
Antes de ser delegada no Rio fui delegada em Minas Gerais. Em 2009 eu ingressei na Comissão Civil de Minas como delegada. Saí de lá em 2012 e fui para o Espírito Santo. Estive delegada no Espírito Santo por aproximadamente um ano e meio e em 2013 ingressei aqui no Estado do Rio. Vim para 134ª DP, para o plantão de área, nessa época eu ainda não morava em Campos e, pra falar francamente, nunca havia pensado em assumir uma delegacia, não passava pela minha cabeça, eu pensava que seria adjunta para sempre. Não estava nas minhas pretensões. Depois passei um tempo na 146ª DP, em Guarus, também como adjunta, mas é claro que as questões de violência doméstica sempre mexeram muito comigo, era algo que chamava atenção no meu trabalho e foi Doutora Natália Patrão, do Departamento de Polícia de Área (DPA), que me perguntou se um dia eu gostaria de assumir a Deam. Minha resposta inicial foi não, mas com o tempo eu fui amadurecendo a ideia e enfim, resolvi entender como missão e aceitar.
E quais os fatores que pesaram pra essa negativa inicial?
É uma carga emocional muito pesada, eu acabo me envolvendo muito com a situação das pessoas, porque não é só a violência doméstica, aqui a gente trabalha também com situação de abuso sexual contra menina, contra mulheres, e é um assunto muito pesado, uma coisa que não tem como você desligar. Eu vou pra casa, é diferente de um plantão, que você assume uma ocorrência de um roubo, por exemplo. É lógico que você se envolve com a história da vítima, mas, aqui, tem um apelo emocional que é muito mais forte. E é difícil se desligar. Eu tenho trabalhado de segunda a segunda.
Os fatores psicológicos precisam ser levados em conta constantemente no trabalho da Deam, certo?
Eu sempre gostei de psicologia. Era uma dúvida que eu tinha antes de fazer faculdade de Direito, eu tinha vontade de fazer faculdade de Psicologia. Eu fiz algumas matérias eletivas na faculdade de psicologia e a gente imagina, mas, lógico que a gente não está na pele da pessoa para saber o quão é difícil a pessoa romper esse ciclo de violência. Até porque a gente vem de uma sociedade extremamente machista, uma sociedade onde a gente não enxerga muitas vezes um relacionamento abusivo, que é um relacionamento abusivo, a pessoa às vezes está dentro da relação, então ela não consegue enxergar que está sendo vítima de violência, porque quando a gente pensa em violência, a gente pensa primeiro em quê? Violência física, mas tem a violência psicológica, a patrimonial, e outras tantas e a violência psicológica é tão grave quanto a física.
No Brasil, durante muitos anos, repetia-se o ditado “Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Após a sociedade tomar conhecimento de tantos casos de violência e a ocorrência de feminicídios, esse comportamento mudou?
É obrigação da sociedade, ajudar. As pessoas não precisam se identificar, não tem problema, basta ligar para a Polícia Militar que, imediatamente, uma viatura vai até o local. Muitas vezes, a polícia consegue prender o agressor em flagrante. Nós precisamos ter em mente que essa mulher é uma vítima, e ela tem tanto medo, que não consegue sequer pedir ajuda, ela, realmente, precisa de alguém por ela. Se um vizinho ouve uma agressão, ele precisa acionar a polícia, em muitos casos ele vai salvar a vida dessa mulher.
Com relação às medidas protetivas, as medidas tomadas pela Justiça para preservar a vida das mulheres, é possível notar um número alto de casos de descumprimento. Homens que mesmo impedidos judicialmente de se aproximar das mulheres seguem ameaçando e importunando. Como a Polícia Civil atua nesses casos?
Esses casos, sim, são muitos, e nós vamos implementar um telefone no plantão exclusivo para os casos de descumprimento dessas medidas, porque tem muitas vítimas que vem aqui, a Justiça concede a medida, mas o agressor encara somente como um papel, ele não enxerga que aquele instrumento não pode ser descumprido. Então, nós precisamos reforçar a punição nesses casos, para que a vítima possa retomar a vida dela, não ficar refém desse agressor. Porque, num caso de descumprimento, nós poderemos prender o autor em flagrante.
Ir até a delegacia, rompendo o ciclo de violência, não é uma decisão fácil para a mulher. Quais a garantias que ela encontra após a denúncia na Deam?
Cada caso é diferente, existem casos específicos, onde se apresenta risco iminente à vida da vítima, que nós precisamos fazer o acolhimento dessa mulher. Mas, nós entendemos que é muito difícil para a mulher romper com tudo que fez parte, inclusive do sonho dela, de ter uma família. Em casos mais drásticos, nós precisamos levar essa mulher para o acolhimento. Em Campos existe a Casa Benta Pereira, que nem nós aqui sabemos a localização, a mulher entra no carro vendada e é levada para ter sua vida preservada. Nesse momento tudo fica para trás, inclusive o trabalho, caso ela tenha, mas, é muito importante termos em mente que é um ato para preservação da vida dela.
Como funciona a interação da Deam com outros órgãos de proteção à mulher?
Eu sempre digo que a Deam não tem como trabalhar sozinha, porque a polícia tem o aspecto punitivo e nós contamos com outros equipamentos, como por exemplo, o trabalho do Ceam, que é o Centro Especializado de Atendimento à Mulher Mercedes Baptista, que atende mulheres vítimas de violência doméstica. O órgão municipal conta com uma equipe multidisciplinar e oferece atendimento jurídico, no qual as mulheres recebem orientações, suporte e encaminhamentos aos órgãos competentes, atendimento psicológico e acompanhamento terapêutico. Todo o nosso trabalho conjunto é para que a mulher possa seguir a vida dela, é claro que ela vai carregar essas lembranças, ela passou por um trauma, a família passou por um trauma, mas o objetivo é que ela possa retomar a vida dela.
Sendo o machismo a raiz da violência contra a mulher, como a sociedade precisa agir para extirpar esse mal?
A gente precisa se policiar todos os dias. Além dos homens, a gente vê inclusive muitas mulheres com falas machistas, reproduzindo essas falas, sem nem pensar que ela mesma pode ser vítima deste pensamento. É claro que não é por maldade, é algo que ela ouve desde criança, mas nós não podemos mais aceitar esse comportamento. A gente não pode naturalizar essas coisas. Essa discussão também passa pela educação. Nós precisamos educar nossos filhos, principalmente os nossos meninos para um mundo igualitário.
E o controle disfarçado de cuidado, ele é um sinalizador para as mulheres?
Com certeza! É preciso estar muito atenta àquele homem que quer ficar mexendo no seu celular, olhando demais a rede social, vendo o que curtiu, escolhendo as amizades da mulher… Acontece muito isso, às vezes o homem quer impedir, inclusive, a mulher de trabalhar, com a desculpa de que ele já dá tudo o que ela precisa, mas na verdade não são cuidados e sim, formas de controle. Escolher o tipo de roupa… Todos esses são sinalizadores.
Você considera que as leis de proteção à mulher são suficientes ou acredita que a legislação ainda necessita de adequações?
Eu acredito que o que nós temos já nos atende. É claro que existe uma demanda muito grande e o sistema jurídico é muito burocrático, mas, o que deixa a sociedade realmente indignada é que em muitos casos, ao final do processo, as penas são convertidas em restritivas de direito. É muito difícil a gente ver um homem cumprindo pena de prisão por violência doméstica, salvo em casos de abuso sexual e tentativa de feminicídio. É claro que o objetivo da lei é educativo, ninguém quer que o agressor seja agressor pelo resto da vida, o que a sociedade espera é que ele aprenda. Pague pelo erro e não volte a errar.