As lágrimas já secaram de tanto chorar. A menina sabe que a vida nunca mais será a mesma. Ela continua com seus quase quatro anos, mas a infância acabou antes do esperado. A garota abraça a boneca como se não tivesse ninguém. E, aparentemente, ela realmente não tem.
A cada hora, quatro menores de até 13 anos de idade são estuprados no Brasil. Esses números foram revelados recentemente numa pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo dados emitidos pela Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam), em Campos, no ano passado, foram feitos 62 registros de estupro de vulnerável. Já esse ano, até o momento foram 16. Em entrevista ao J3News, a psicóloga do Conselho Tutelar Priscila Oliveira contou a história de uma criança de cerca de três anos que foi abusada pelo genitor: “Em consequência do abuso sofrido, ela teve o rompimento de parte do períneo, colocando, assim, sua vida em risco. Essa foi uma das histórias mais marcantes e difíceis de conduzir”, relatou Priscila.
Segundo Juliana Oliveira, delegada titular da Deam Campos, em entrevista exclusiva ao J3News os números ainda podem aumentar porque alguns registros estão pendentes de laudo ou outras diligências para confirmação dos crimes: “Esses casos de estupro são denunciados depois de alguns anos, muitas vezes a vítima não sabe nem o que está acontecendo ali com ela. (…) Quanto maior a proximidade há uma subnotificação ainda maior”, disse.
Um café da manhã e suas histórias
Em um simples café da manhã com amigos surge o assunto sobre abuso infantil e, de repente, começam os relatos de quem já passou por isso. Com os olhos marejados, Bruna* se recorda de quando tinha apenas 15 anos e o então namorado da irmã mais velha, maior de idade, “passava a mão” nela e levantava o lençol dela enquanto ela dormia. Ela nunca tinha tido coragem de contar isso a ninguém.
Em seguida, Carol* dá um depoimento impactante. Ela recorda que quando tinha 12 anos foi confessar pela primeira vez antes da Primeira Eucaristia e o padre falou para que se sentasse no colo dele e deu um tapa nas nádegas da menina. Ela nunca mais quis confessar.
Carlos* relembra que, ainda menino, rapazes mais velhos também passavam do ponto com ele e que, “antigamente isso não era um tabu e como é importante isso ser falado”, refletiu.
Para a psicóloga Priscila, a Educação Sexual é a melhor ferramenta de proteção para a criança: “Se é instruída desde sempre, os limites de um toque, o cuidado com seu corpo, o acesso ao seu corpo por outros, ela tem mais possibilidade de identificar que está sofrendo um abuso e denunciar”, explicou.
*nomes fictícios
“O agressor mora ao lado”
A maioria dos casos de estupro de menores é cometida por pessoas com algum tipo de vínculo com a vítima, sendo o agressor uma pessoa conhecida, que muitas vezes frequenta a residência, ou mesmo um parente próximo. A delegada estima que, dos casos registrados na Deam Campos, cerca de 80 a 85% são praticados por parentes ou pessoas que tinham algum vínculo afetivo: “Normalmente são familiares ou alguém muito próximo, (…), pois dificilmente uma criança fica sozinha com um estranho. Quando é com um estranho a denúncia é mais rápida, porque não tem o medo daquela criança do que o agressor pode fazer com ela”, explicou.
A titular da Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva da Infância e da Juventude de Campos, Anik Rebello, fez menção às questões das relações de poder dos abusadores: “Pessoas da família se valem da relação de confiança estabelecida com a vítima ou mesmo o poder hierárquico inerente à condição vulnerável decorrente da idade e condição social para acuá-la”, enfatizou.
Menina abusada por pai e mãe
Em um caso que chocou a cidade de Campos, a polícia prendeu, em abril deste ano, os pais de uma menina de nove anos que abusavam dela.Segundo as autoridades policiais, além de ser vítima de estupro, a menina também sofria maus-tratos. Em uma entrevista coletiva concedida na época da prisão, a delegada, Juliana Buchas, disse que a menina foi internada em um hospital com sintomas de vômito e perda de peso e sobre outras questões: “Ela já estava há uma semana sem tomar banho e, há um mês, sem lavar o cabelo. Ela chegou com a cabeça infestada de piolho e com feridas na cabeça”, disse a delegada. Depois, com a passagem pela ginecologista do hospital, o estupro ficou constatado, devido ao rompimento do hímen e outra marca encontrada na parte íntima da menina, condições apontadas em laudo pericial da Polícia Civil. Os pais foram indiciados por estupro de vulnerável e maus-tratos. A menina teve alta do hospital e está sob os cuidados de um abrigo. O casal segue preso.
Mudança no comportamento da criança
Os menores que sofrem abuso sexual muitas vezes não falam a respeito, mas, segundo a psicóloga Priscila Oliveira, é comum que apresentem mudanças de comportamento e inibições: “São fruto de um conflito interno, onde a criança experimenta muitas sensações diferentes como medo, insegurança, vergonha, culpa, retraimento social, transtornos alimentares e de socialização, entre outros”, disse.
A delegada Juliana Oliveira recomenda que pais, professores e profissionais da saúde fiquem atentos aos sinais que os menores dão: “Por exemplo, uma criança que brincava com os amigos, era aparentemente normal e, de repente, (…) começa a vomitar, começa a passar mal, começa a perder peso, tem alguma coisa de errado”.
A promotora Anik explicou que, além de importante, também é imposto a esses profissionais que façam denúncia: “Professores, médicos e enfermeiros possuem, por força do art. 245 do ECA, a obrigação legal de enviar a notificação para as autoridades e a ausência do cumprimento desse dever pode gerar a representação do profissional pela prática de infração administrativa e a imposição de multa que pode variar de 3 a 20 salários mínimos”.
Meninos também são vítimas
Apesar do estupro ou tentativa de estupro contra meninas ser mais denunciado e mais falado, os meninos também são vítimas e a violência fica encoberta por omissões quando ocorre na comunidade. A delegada Juliana Oliveira acredita que a subnotificação de casos de abusos sexuais de meninos é ainda maior do que os das meninas porque se acredita que o estupro é apenas a penetração: “A pessoa acha que passar a mão no bumbum não é estupro, agarrar, um beijo contra a vontade da criança ou contra menor de 14 anos não é estupro. Mas, tudo isso configura estupro”, disse Juliana. Ela completou dizendo que os meninos têm maior dificuldade em falar a respeito do abuso: “A tendência do menino é ter mais vergonha ainda, ter essa dificuldade de verbalizar para os pais. (…) Mas, acho que o número de abusos é bem semelhante, e, há uma subnotificação ainda maior em caso de vítimas meninos”, finalizou.
Projeto de Lei em discussão
A vida de meninas vítimas de abuso também pode ser afetada em caso de gravidez. Em pauta nos últimos dias na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 1904/24 prevê que aborto realizado acima de 22 semanas de gestação, em qualquer situação, passará a ser considerado homicídio, inclusive no caso de gravidez resultante de estupro. A Câmara aprovou urgência para a votação do projeto.
A denúncia de uma violência sexual pode ser feita pelo Disque 100, dos direitos humanos, nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), Conselho Tutelar e no número 127 para o Ministério Público.