Todos nós guardamos reminiscências da infância. É certo que para muitas pessoas esse período foi atravessado por alguma falta afetiva, ou escassez material, ou um trauma, talvez. Em geral, porém, é dessa época que evocamos nossas recordações mais singelas e cativantes. Tempo de experimentações e descobertas, de viver a onipotência dos super-heróis ou a fantasia das princesas, de poucas responsabilidades, de brincar de bola, de pique, de boneca. Tempo de maior pureza e inocência.
Com o passar dos anos, a mochila com que percorremos a jornada da vida vai enchendo, enchendo… ficando pesada, pesada… quase sempre, pesada demais. Dentro dela vamos colocando as nossas dores, os sonhos frustrados, as decisões não tomadas, os amores rompidos, as palavras que penetraram como flechas, a saudade do que se foi, a amargura das decepções, a ansiedade pelo futuro assombrada pelos fantasmas do passado. Como se não bastasse, a trajetória do nosso amadurecimento se dá num mundo cada vez mais violento, injusto, acelerado e impessoal.
O que fazemos, então, para carregar esse fardo e suportar tanta pressão? Aos poucos, vamos “deixando a criança crescer na nossa alma”, criando casco para aguentar a pancada. Para driblar o sofrimento e sobreviver nessa realidade caótica, passamos a lidar com as pessoas de maneira desconfiada, fingimos ser quem não somos, dissimulamos a verdade, deixamos de ter esperança no futuro. E, assim, ao perdermos a capacidade de contemplar a vida com doçura, atestamos o óbito da criança que habita em nós, pois criança crescida já não é mais criança.
Preservar essa criança não significa desistir dos compromissos da vida adulta nem renunciar às nossas responsabilidades. Nada mais lastimável uma pessoa não saber quem é e viver se comportando como quem se esqueceu de amadurecer. Contudo, podemos suscitar novamente nossa essência mais ingênua, outrora apagada, e redescobrir a felicidade por trás das pequenas coisas as quais deixamos adormecidas para não parecermos ridículos aos outros: um banho de chuva, uma gargalhada de algo bobo, uma piada de nós mesmos. Ainda que por disciplina, podemos avocar o “Dia das Crianças” e transformá-lo em “dias de criança”, quando seremos mais sinceros e menos maliciosos, exploraremos fragmentos da vida como se fosse a primeira vez, estaremos abertos a novas experiências e enfrentaremos o mundo com a guarda mais baixa e menos convicção de que já sabemos de tudo.
Enquanto nos preparamos para mais “dias de criança”, reflitamos sobre a paradoxal complexidade do ser humano cantada nos versos da poetisa: “É que a gente quer crescer/E quando cresce quer voltar do início/Porque um joelho ralado dói bem menos que um coração partido”. Bom é saber que depende de cada um de nós deixar (ou não) que o coração partido doa mais que o joelho ralado. Afinal, “Dá pra viver/Mesmo depois de descobrir que o mundo ficou mau/É só não permitir que a maldade do mundo te pareça normal”.