Na casa onde Analice Martins nasceu, os livros, a poesia, as artes plásticas, o gosto pelas palavras e pelos pensamentos sempre fizeram parte de uma rotina familiar. As primeiras influências de seus pais — os professores Oswaldo Martins e Ruth Maria Chaves Martins —, podem ser sentidas e relembradas ainda hoje. A escolha pelas letras, pelo ensino da língua portuguesa e da literatura tem provocado satisfações e muitas experiências no ofício do magistério. A mais recente destas é a publicação do livro “Entremeios – ensaios sobre literatura, cinema e comunicação” (Appris, 2018). A obra será lançada em Campos dos Goytacazes no próximo dia 21, no Museu Histórico da cidade. A intenção é apresentar o livro para o Brasil e para o mundo de leitores além-fronteiras em versões impressa e digital. Dona de um currículo respeitado no meio acadêmico, Analice Martins costuma exercer fascínio e admiração entre aqueles que participam de suas classes e leituras. Considerá-la dama das letras compreende-se melhor ao escutá-la, e, no caso desta edição, ao lê-la.
1- São muitos anos dedicados à língua portuguesa e à literatura como professora e ensaísta. Como surgiu a ideia de publicar este livro Entremeios: ensaios sobre literatura, cinema e comunicação”?
Não era um desejo tão recente assim. Acho que foi uma decorrência natural dos estudos desenvolvidos ao longo dos últimos 15 anos em que a literatura brasileira contemporânea, o cinema nacional e europeu e condições de produção, leitura e circulação de obras literárias na internet constituíram o núcleo central das minhas pesquisas na Graduação e na Pós-Graduação do Instituto Federal Fluminense (IFF) e da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). Achei que parte significativa dessas pesquisas teria fôlego para constituir um livro com alguma contribuição reflexiva autoral.
2- Pelo título da obra, já temos pistas sobre os temas. Comente-os e destaque a inspiração e a motivação para abordar tais assuntos.
Como disse anteriormente, minhas áreas prioritárias de interesse são a literatura, o cinema e a relação entre arte e tecnologia. Mas há um ponto de vista a partir do qual elas são analisadas, que é a noção de trânsitos e deslocamentos, ou seja, como, na ficção contemporânea, reatualizam-se questões tão caras ao indivíduo e às culturas, como o localismo e o cosmopolitismo, a sensação de pertencimento e as necessidades de desterritorialização, o atravessamento de fronteiras geográficas e disciplinares.
3- Dá muito trabalho publicar um livro dessa natureza? Conte como foi o processo de produção e escolha dos textos.
Foi um processo muito interessante no que diz respeito à escolha dos artigos, pois me obrigou à releitura de mim mesma, de minha escrita em momentos diversos e para situações e públicos diversos. Algo como você diante de si mesmo, que às vezes lhe parece alguém próximo; às vezes, estranho, sentimento de familiaridade e estranhamento envolvidos. Uma espécie de “arqueologia de si”. Não foi um processo sofrido até porque pude desenvolvê-lo em condições favoráveis. Agora, a escolha da editora, a relação com a equipe editorial, prazos, revisões e mais revisões, tudo isso foi uma novidade para mim, como autora.
4- Este é teu primeiro livro? Você por muito tempo colaborou como articulista em jornais, além de utilizar a web com a existência de um blog chamado “Rumores e Ruídos”. Como é escrever para esses formatos? Há diferenças?
É o primeiro livro de minha exclusiva autoria. Tenho artigos publicados, de forma impressa, como capítulos de livros com outros pesquisadores, além de publicações em revistas e periódicos acadêmicos de circulação eletrônica. Tive, entre 2012 e 2015, a oportunidade de colaborar, semanalmente, para o caderno de cultura de um periódico local. Essa experiência foi um divisor de águas, pois, entre outras coisas, me obrigou a falar fora da caixinha, para leitores não especializados necessariamente, de forma mais clara e menos cifrada do que quando falo e escrevo para pares. Sempre escrevia com um frio na barriga. A coluna se chamava Rumores e Ruídos. Eu a transformei em um blog – ativo até hoje – para que os textos ganhassem circulação fora do impresso e pudessem ser “depositados” em algum lugar para além da efemeridade do jornal impresso.
5- Tua formação acadêmica é toda voltada para a língua portuguesa e literaturas. Recentemente, viveu na Itália por um ano participando de um pós-doutoramento. Fale sobre essas experiências.
Entre professores universitários e pesquisadores, há uma brincadeira em que dizemos que um Pós-Doutorado ou Estágio Sênior é a “cereja do bolo” da vida acadêmica. Isso se explica facilmente. De maneira geral, é uma pesquisa desenvolvida com menos amarras, em que não há a figura de um orientador e disciplinas e créditos a cursar em horários estabelecidos. Há um supervisor que aceita sua proposta na Universidade de destino, no meu caso a Universitá degli Studi Roma Tre, em Roma. Trabalhei, portanto, com a supervisão do professor Giorgio de Marchis, um professor italiano especializado em Literaturas de Língua Portuguesa, entre as quais, a Brasileira. O professor De Marchis, além de pesquisador e ensaísta, é tradutor e editor de várias obras de nossa literatura brasileira contemporânea. Tive também a oportunidade de ocupar o cargo de visiting professor(professor visitante) e lecionar durante 3 meses literatura brasileira para alunos italianos. Uma experiência maravilhosa: desafiadora e enriquecedora.
6- Como professora e orientadora de trabalhos acadêmicos, você tem participações no Instituto Federal Fluminense e Universidade Estadual do Norte Fluminense. Como avalia a produção acadêmica e o interesse pela pesquisa sobre comunicação, audiovisual e literatura?
Apesar de saber que a literatura é a “prima pobre” da nossa contemporaneidade e que não é mais o centro da cultura, não tenho do que me queixar. Há procura, há interesse, há aprofundamento e, sobretudo, diálogos interdisciplinares. O audiovisual desfruta de mais interesse em nossos dias, mas tem que ser pensado muito além do entretenimento. Sempre falo de comunicação e audiovisual, a partir da literatura, que costumo dizer é “minha janela para o mundo”.
7- Você ajudou a criar o curso de Letras no IFF. Como vê o mercado de trabalho e o interesse de pessoas por essa área que se destina a ensinar português e literaturas?
O mercado de trabalho é sempre aberto para as licenciaturas em geral. Precisamos urgentemente de professores bem formados. Outra coisa é a procura ser menor em relação a outras áreas do conhecimento em função das condições de desprestígio em que o professor no Brasil está inserido. Triste país o nosso nesse sentido! No IFF, a procura pela Licenciatura em Letras é constante e expressiva. Somos o único curso público e presencial fora do Rio de Janeiro e de Niterói. Recebemos a nota máxima (5) do MEC no reconhecimento do curso pelo MEC. Lutamos pela manutenção desse padrão diariamente, porque acreditamos, por mais clichê que possa parecer, que oferecer educação de qualidade é um compromisso social e uma alavanca de transformação.
8- Sente-se otimista ou pessimista quanto ao magistério e à carreira acadêmica? Arrisca um palpite sobre o futuro dessas funções?
Acho que, em parte, já respondi a essa questão. Mas posso acrescentar que, apesar de um cenário nacional totalmente desfavorável à educação e à pesquisa, temos que lutar bravamente para reverter esse quadro e dar, aos nossos futuros professores, conhecimento e habilidades para lidar com uma realidade que parece “se desmanchar no ar” a cada segundo.
9- Seus pais foram professores bastante elogiados em Campos. Fale sobre eles e as influências que teve em sua trajetória profissional. Autores também ajudaram na sua formação? Cite-os.
De meu pai, professor Oswaldo Martins, eu tenho uma memória reconstruída. Quando ele faleceu, eu tinha apenas 5 anos. Cresci entre seus desenhos. Ele era desenhista e ilustrador. Formou-se em Belas Artes. Também foi poeta. Quando eu era criança e até a adolescência, eu queria ser desenhista. Minha mãe me incentivava, comprava lápis, esfuminhos, cartolinas, livros. Mas foram as letras que me prenderam em suas “malhas”, para usar uma expressão do crítico Silviano Santiago. Minha mãe, a professora Ruth Maria Chaves Martins, foi, sem nunca parecer ser, em função de sua modéstia e de sua brandura, a minha maior influência como leitora. Eu achava, quando criança e ainda hoje, que todos os livros da sua biblioteca viviam na sua cabeça, naquela memória prodigiosa, naquela capacidade de associar, relacionar, inferir, naquela voz mansa e penetrante. E, por paradoxal que pareça, naquele silêncio, nas suas palavras sem alarde. As coisas iam me tomando por osmose. Conheci a poesia de minha mãe já adulta, pois ela dizia que tinha parado de escrever, mesmo tendo sido agraciada, aos 22 anos, com o maior prêmio da literatura nacional à época, o prêmio Nestlé. Seu Roda, pião! foi lido e comentado por poetas como Manuel Bandeira. Conviveu com Cecília Meireles, recebeu elogios até de Guimarães Rosa por um poema intitulado “Sereia”. Enfim, Entremeios é dedicado a ela. Não poderia ser diferente. Uma pálida homenagem.
10- Como avalia o interesse das pessoas por livros e literatura atualmente? Há novos leitores sendo bem formados ou influenciados? Como atrair o interesse pela leitura em tempos digitais?
Tempos digitais e leitura não se excluem. Acho até que podem ser bons amantes. O que dificulta a leitura, em especial a literária, é o lugar e o tratamento que recebe na escola, que deveria ser o espaço de acesso democrático a ela, já que nem todos, ou melhor, bem poucos no Brasil convivem em espaços familiares de estímulo à leitura. A escola tem que repensar sua atuação.
12- Publicar um livro em formato impresso em uma era tecnológica como a nossa é um desafio maior ou independe?
De maneira geral, os livros impressos hoje já se fazem acompanhar de um e-book. É o caso do meu. Estará disponível nas duas versões. Adquirir é uma questão de custo e de preferência para o leitor-consumidor. A publicação impressa ou eletrônica, feita por uma editora com conselho editorial, edital etc é trabalhosa sempre, mas goza de certa “autoridade”. Já as autopublicações são a novidade dos nossos tempos. Quem escreve pode se autopublicar, se divulgar e se fazer ler sem, necessariamente, ter a mediação de uma editora. São condições de produção de nossos tempos velozes e vorazes. Cada um deve avaliar seus interesses e possibilidades como autor.
13- Entremeios é um livro de ensaios, mas você também se aventura na ficção e na poesia? Pretende tornar públicos esses conteúdos também?
Eu não diria que escrevo poesia propriamente. Acho que chamaria de “experimentos com a linguagem”. Mas quem me lê pode me perceber (ou não) como poeta. Esses textos já são públicos, pois estão todos disponíveis em www.rumoreseruidos.com. Quanto a ganharem a forma de um livro e não apenas de postagens episódicas, há muito arroz com feijão a ser comido. Nem toda publicação é um livro. Um livro deve conter em si um projeto, ao menos uma intenção, alguma organicidade, um princípio constitutivo, uma voz autoral. Não sei se chegarei a esse estágio, mas já fico bem satisfeita, tanto quanto encabulada, de saber que são lidos, apreciados também, relidos em outras linguagens. A autora da capa de Entremeios, por exemplo, a artista plástica Lílian Vieira, “traduziu-os” em várias telas. Quanto à poesia, então, prefiro ser apenas leitora e professora por ora.
14- Fala-se que as mulheres são maioria entre leitores, mas ainda há homens publicando mais livros que as mulheres. Percebe isto também? O que ocorre?
Acho sim que há muito mais mulheres sendo publicadas ou se autopublicando, como comentei antes, o que é uma conquista de formiguinha, tendo em vista a histórica desigualdade de gênero e suas consequentes faltas de oportunidade no Brasil em especial. Mas mulheres sempre escreveram, que isso fique claro! Outra coisa é a visibilidade e o “lugar” que essa escrita passou a ter. Das gavetas e dos diários escondidos para as páginas e telas!
15- Você pretende se dedicar a mais publicações? Depois de “Entremeios”, o que pretende em relação à literatura e aos trabalhos e pesquisas acadêmicos?
Tenho o projeto de organizar outro livro de ensaios com a participação, agora, de vários pesquisadores. Ler, pesquisar, compartilhar, orientar são condições intrínsecas ao magistério, à vida de professora, certamente, a minha persona mais evidente.
16- Para encerrar, que dica daria para quem quer ser leitor?
Com o perdão do trocadilho, entreguem-se ao “chamado” de todos os signos verbais e não-verbais que nos enredam as vidas. Aventurem-se! Ler nos desloca de nós mesmos, conduz-nos não só a informações, mas a outros mundos, experiências e aprendizados. É uma viagem sem sair de casa necessariamente.